A Depuração do Despojamento de Filmar
É impressionante a objetividade das imagens e do texto de O Processo de Joana d?Arc
O processo de Joana d’Arc (Procès de Jeanne d’Arc; 1962), dirigido pelo francês Robert Bresson no auge do cinema intelectual europeu (aqueles anos entre o fim da década de 50 e o início da década de 60 do século passado) é uma luminosa depuração do despojamento de filmar de seu realizador. Obscuro para o público que espera do cinema o gosto fácil e acetinado popularizado pelas formas comerciais de filmar, luminoso para o espectador interessado na transcendência da narrativa cinematográfica, Bresson visita o universo da lendária mística francesa Joana d’Arc muitos anos depois do dinamarquês Carl Theodor Dreyer ter feito seus delirantes arranjos metafísicos em A paixão de Joana d’Arc (1928); como Joana se tornou uma figurinha carimbada no cinema (a sueca Ingrid Bergman a interpretou duas vezes, uma em 1948 para o americano Victor Fleming, outra em 1954 para o italiano Roberto Rossellini, com quem era então casada; o austríaco radicado na América Otto Preminger promoveu a estreia da francesa Jean Seberg no cinema em Santa Joana, em 1957), é bom ver como a originalidade e o rigor de Bresson se distanciam de tudo isto e notar que somente Bresson se equilibra numa comparação com a Joana que Dreyer trouxe para o cinema no fim dos anos 20 do século XX.
É impressionante a objetividade das imagens e do texto de O processo de Joana d’Arc. Parece que nada respinga daquilo que o filme vai dispondo. Então, diante de tamanha objetividade (aparentemente jornalística em seu levantamento dos autos do processo histórico topados nos arquivos franceses), dá-se o milagre do cinema de Bresson: assim como Joana tem em suas elipses de vida as vozes que a aconselham e comandam, é nos interstícios das imagens que a extremada espiritualidade de Bresson se concretiza; ninguém ouve em cena as vozes de Joana, mas na verdade estas vozes estão naquilo que ela está dizendo objetivamente e saltam da tela, provocando o encantamento. Para muitos espectadores parece que esta emoção não chega. O que é mesmo a emoção em cinema? Emoção em cinema não é uma coisa única e linear; é um conceito tentacular. E nestes tentáculos há uma categoria de emoção em que cabe o estilo de filmar de Bresson; brutalmente seco, com suas frases mais despejadas do que ditas, com seus modelos interpretativos mais sem interpretação do que expostos a gestos e entonações, com seus cenários e iluminações despojadíssimos e brancos.
A influência de Bresson no cinema pode ser um tanto quanto problemática, dada a exterioridade habitual do cinema e uma tendência natural dos filmes à vulgaridade. Ocorre-me agora que um filme brasileiro, voltado para um tema aparentemente diverso, não oculta a inspiração bressoniana: Os inconfidentes (1972). Como O processo de Joana d’Arc, o filme de Joaquim Pedro de Andrade se baseia em autos de um processo antigo, no caso os autos da Inconfidência Mineira que julgaram nossos inconfidentes, especialmente Tiradentes; como Bresson, Joaquim Pedro utiliza desdramaticamente os textos nas bocas dos atores e despoja extremamente os cenários de época.
Entre as várias imagens expressivas de O processo de Joana d’Arc há os olhos que espiam Joana na prisão por um buraco na parede da cela e alguns primeiros planos trêfegos de Joana caminhando para seu suplício final.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br