O Despojamento da Camera: O Artificio Inventivo

Como habitualmente, o quadro cinematografico de Sang-soo nao se move

04/07/2022 13:28 Por Eron Duarte Fagundes
O Despojamento da Camera: O Artificio Inventivo

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O cinema do sul-coreano Hong Sang-soo tem uma coerência estética extraordinária, e com grande capacidade de renovação a cada filme: ainda que pareça, sempre, estar fazendo os mesmos movimentos cinematográficos. A mulher que fugiu (Donangchin yeoja; 2019) é um êxtase de simplicidade no uso da forma; o espectador poderia pensar nos planos imóveis do japonês Yasujiro Ozu ou no ascetismo de tons do francês Robert Bresson ou ainda nos diálogos construídos de outro francês, Éric Rohmer; mas os artifícios estilísticos de Sang-soo buscam outros naipes, a plástica de sua edificação de planos tem outras invenções.

Como habitualmente, o quadro cinematográfico de Sang-soo não se move, basta-lhe o plano fixo enquadrando as personagens, suas conversações, suas ações mais simples. Aqui e ali pequenos movimentos de câmara podem ajustar o ângulo, suas intenções, sua plasticidade. Como em vários de seus trabalhos, Sang-soo constrói sua visão perplexa das pequenas coisas do universo feminino, amores, dúvidas, irritações, tratativas instáveis: as mulheres centralizam o universo cinematográfico de sensibilidade extrema. Em A mulher que fugiu o cineasta depura todos os elementos de sua forma de encenar para atingir um ponto elevado de sua arte; um dos elementos que ele trabalha com grande denodo é uma forma de dirigir suas atrizes para chegar à autenticidade das personagens, construções artificiais de pessoas, símbolos e signos que se esforçam pela transparência do real, um tipo de simplicidade que vira pura profundidade.

Há uma personagem feminina central: é dos diálogos com ela que as outras ramificações explodem na tela. Esta personagem é Gamhee. Ao ver a intérprete, Min-hee Kim, o espectador já sabe que a viu em outros filmes. De Sang-soo, certamente algum. Sem a familiaridade com os rostos orientais, o observador ocidental busca os cadernos. Min-hee esteve pelo menos em dois filmes de Sang-soo: Na praia à noite sozinha (2016) e O dia depois (2017). E num filme de outro sul-coreano, Park Chan-Wook: o extraordinário A criada (2016). Gamhee, a personagem de Min-hee, vai passar o filme visitando amigas: ela diz que em cinco anos nunca se separou de seu marido, que agora está viajando a trabalho e por isso não está com ela; a primeira amiga fala-lhe um pouco de um ex-marido. Em seu trajeto amical, Gamhee visita amigas que têm problemas com um vizinho que se queixa dos gatos que elas alimentam, uma amiga reclama de seu marido escritor que vai à televisão para repetir-se e não ser sincero; assim, os encontros sucedem-se, constroem-se as personas, e há até cenas dentro duma sala de cinema. No plano derradeiro do filme, Gamhee está dentro duma sala, a câmara a fixa sentada na poltrona, passados poucos segundos a câmara desloca-se da personagem para a tela e enquadra em plano fixo um mar turbilhonando por algumas ondas; esta imagem do mar fecha o filme, antes de os créditos finais descerem.

O título do filme é um enigma. Embora a certa altura as amigas se refiram a uma vizinha que saiu de casa e ainda não voltara, faz dias. No fundo, parece que, nas próprias relações cotidianas, as pessoas estão constantemente fugindo umas das outras: falam, porém escamoteiam. Uma das amigas visitadas por Gamhee (enquanto o marido de Gamhee está ausente —fugiu no trabalho, o homem que fugiu?) está tentando fugir dum rapaz com quem dormira, bêbada, certa noite: ele se apaixonara, ela está arrependida. Procura e fuga: os gestos de fluxo e contrafluxo nas relações humanas.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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