O Autêntico Verhoeven
Pois digam o que disserem, o holandês Paul Verhoeven nunca chegou a rodar um filme tão ameaçador e autêntico quanto Louca Paixão
Pois digam o que disserem, o holandês Paul Verhoeven nunca chegou a rodar um filme tão ameaçador e autêntico quanto Louca paixão (Turkish delight; 1972), seu segundo filme longo e o primeiro que revelou ao público brasileiro o explosivo talento do cineasta ali no início dos anos 80 (a realização holandesa chegava a Porto Alegre com dez anos de atraso). Mesmo que Verhoeven tenha estreado em Hollywood com o belo e provocativo Conquista sangrenta (1985) e tenha voltado recentemente à Holanda para fazer o preciso A espiã (2006), mesmo que Soldado de laranja (1977) tenha inquietação e dignidade, nenhum destes filmes sequer chega perto da carga de voluptuosidade escatológica de Louca paixão; as loucuras de sexo, amor e morte de Verhoeven neste seu antigo trabalho tornam risível o barulho que se fez em torno do descruzar de pernas de Sharon Stone no concessivo Instinto selvagem (1992); é de concessão à indústria que são feitos sucessos comerciais do realizador como Robocop (1987) e Showgirls (1995); é claro que em todos os seus filmes, mesmo naqueles adaptados às convenções do cinema, Verhoeven mostra sua classe de autor, mas só em Louca paixão ele foi autêntico, despudorado, cru, sem máscaras.
Desde o começo, Louca paixão usa de muita crueldade visual para com o espectador, crueldade que ainda hoje permanece intocável. O holandês Verhoeven expõe objetivamente as genitálias e as ações sexuais de suas personagens. A força narrativa é marcada pela figura perversa e extravagante de Eric, vivido por Rutger Hauer, um tipo cênico nos anos 70 diferente e virgem de modelos interpretativos conhecidos. As sequências iniciais mostram o isolamento individualista da personagem, sua relação desaforada com o mundo, sua obsessão dura e carnal com as mulheres; numa cena os seios caídos duma parceira o fazem desistir de transar com ela, numa outra cena ele chega diante dum carro, agride e sangra um homem e dispara contra a mulher. A partir de seu relacionamento fora de padrão com Olga, interpretada com idêntico sangue por Monique Van Der Ven, situado dois anos antes dos episódios soltos do início do filme, o sentido existencial de Eric começa a desenhar-se.
Feito quase ao mesmo tempo que outra crônica definitiva do amor louco no cinema, O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci, Louca paixão é mais brutal e baixo calão, sem as soluções espirituais que um esteta como Bertolucci adota; diante do excremento muitas vezes exalado por Louca paixão, a amanteigada sodomização de Maria Schneider por Marlon Brando no filme de Bertolucci parece uma instrução para freiras. Rutger propõe mais: que Monique urine sobre sua boca.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br