A Histria de Nelson e Depois Reconstruda por Jabor
O Casamento de Jabor tem boas coisas, que resistem ao tempo, como a fora duma narrativa visual
Nelson Rodrigues foi acima de tudo um dramaturgo. Usou muito das histerias suburbanas brasileiras para construir seu universo teatral. Em suas peças Nelson refaz as peculiaridades da linguagem do povo: em seu texto a fala coloquial tem um sabor muito particular, em sintaxe e vocabulário. As marcações da narrativa de Nelson são de teatro mesmo: entradas e saídas de cena e, apesar da naturalidade do verbo, diálogos que impõem uma certa solenidade, ainda que de subúrbio. Daí a estranheza de que se tece o único romance de Nelson, O casamento (1966), encomendado inicialmente por Carlos Lacerda como editor. Não que esta teatralidade das tragédias do sexo cotidiano impeçam O casamento de chegar a algum rumo; mas dissolvem a estrutura e tornam a experiência bastante datada na década de 60, com suas provocações aos costumes sexuais da época e a irregularidade com que estas provocações, formalmente, se alinhavam.
Assim como está, O casamento antecipa um pouco das coisas expostas no cinema pelas pornochanchadas brasileiras: as obsessões sexuais da burguesia brasileira, traições e crimes, homens rejeitando esposas doentes, pais desejando fisicamente a filhas. Nelson é mais cortante, é claro, do que os pornógrafos. Tem a avidez e a criatividade do verbo que os rasteiros não sabem conduzir. Mas seu romance, e não suas peças, é uma pré-pornografia, mesmo que saiba ser antipornográfico, por alguma densidade buscada.
Não sei se O casamento seria levado muito a sério pela posteridade se não tivesse a assinatura de Nelson. Ele provocou barulho em seu tempo, naturalmente. Hoje suas provocações eróticas parecem estereótipos ingênuos: um pouco adolescentes, não fosse a verve linguística de Nelson. Não é uma tentativa malograda de transpor para o romance uma peça de teatro. Mas está longe dos aspectos de inserção na evolução do romance brasileiro, como querem seus admiradores mais ativos. Um limbo literário.
De uma certa maneira, a transposição feita por Arnaldo Jabor em 1975 também se enquadra por aí. O casamento de Jabor tem boas coisas, que resistem ao tempo, como a força duma narrativa visual, sobretudo carregada pelo distanciamento patético da interpretação de Paulo Porto e pela presença cênica vulcânica da atriz Adriana Prieto, que morreria num acidente automobilístico (em que seu carro foi atingido brutalmente por um fusca da polícia duas semanas após os términos da filmagem, na véspera de Natal de 1974). A química entre Porto e Adriana e a direção firme com que Jabor encena os diálogos devassos e doidos de Nelson conduzem o melhor da narrativa cinematográfica. O lado tosco e débil dO casamento de Jabor vem daquilo que o cineasta herdou sem meios-tons do dramaturgo: os gritos exacerbados e certas obsessões moralistas do sexo exasperam. Era esta a marca de Jabor na época, que esteve melhor em Toda nudez será castigada (1973) e fora depurada em Tudo bem (1978), onde o sangue e o grito se tornaram surdos, abafados, soturnamente profundos; o sangue corre solto à volta da festa de casamento de Glorinha em O casamento, mas em Tudo bem este mesmo sangue, surgindo da briga de dois operários, enodoa a sala de inauguração do apartamento reformado de maneira discreta e oculta mas sempre ameaçadora.
Histéricos além do ponto, tanto O casamento de Nelson quanto O casamento de Jabor não estão entre as criações mais autênticas destes dois artistas. Mas têm historicamente relevância: não se poder esquecer a esquisitice atoleimada, construída irrepreensivelmente, de Paulo Porto, quando sua personagem recebe a notícia do assassinato de sua secretária (também sua amante), exclamando reiteradamente: “Importante... é o casamento.” (No livro lemos, só uma vez, sem artigo e sem reticências: “—O importante é o casamento!”. Neste aspecto, talvez o romance de Nelson sobreviva mais graças às imagens do filme de Jabor, das quais o texto de Nelson parece não despegar-se com os anos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br