A Furia do Sexo: Nelson, Sonia e Neville
Sonia eh A Dama do Lotacao: a dama do lotacao, um vulcao para quem sabe recordar-nos o quanto fomos jovens e tinhamos uma rebeldia maliciosa que explodia em bombas eroticas irrefreaveis
Há uma cena, lá pelo início de A dama do lotação (1978), de Neville d’Almeida, que é uma espécie de virada dos rumos do filme e de sua personagem central. Sônia Braga, jovem e bela como nunca, vai para um local afastado do urbano, e ali a câmara a surpreende tirando uma calcinha branca e em seguida pondo uma calcinha preta, ambos os gestos (tirar a calcinha e pôr a calcinha) executados por sob o vestido, que é ajeitado pelas mãos da atriz enquanto caminha seduzindo o espectador, quer dizer, ajeita a calcinha, que agora não vemos e está debaixo do vestido. Esta cena zombeteira e maliciosamente erótica é feita numa linguagem cinematográfica escrachada e matreira: a câmara esconde-se atrás de dois troncos de árvore, para espiar, junto com o observador na sala de cinema, o andar de Sônia; Sônia ajeitando o vestido, Sônia ajeitando a calcinha, Sônia mexendo em seu próprio traseiro, tudo semelha gestos vulgares tantas vezes vistos nas mãos de algumas mulheres que o assistente topa do lado de fora do cinema; mas o caminhar de Sônia é estilizado como o de uma fêmea do francês François Taffaut em seus filmes e no entanto há aí uma brejeirice brasileira de moleque atrevido, exalando muito da atmosfera visual e narrativa dos filmes brasileiros mais abundantes na época, as pornochanchadas. Neville não é, nunca foi um diretor de filmes pornográficos, apesar das aparências; ele começou no cinema marginal; porém A dama do lotação, conquanto mantenha alguma coisa da farsa truculenta da estética udigrudi dos tempos em que o diretor filmou Piranhas no asfalto (1970), apresenta uma guinada comercial nova em seu cinema: usa a estrela nua (o corpo maravilhoso de Sônia então), muita sacanagem sexual e chega ao conhecimento do sucesso que seu marginalismo fílmico jamais poderia suspeitar.
As cenas da calcinha (trocar de calcinhas e depois ajeitar à luz da câmara a calcinha, como uma garota vileira) dá o tom da ambiguidade duma realização como A dama do lotação: erotizar a quem assiste ao filme e sentar em cima deste erotismo nosso com sarcasmo e alguma violência crítica. Solange, a ingênua casada e fria que só logra expor sua potência sexual fora do casamento, grita para o homem que a deseja (o sogro, um motorista de ônibus, um passageiro, um amigo do marido): “me xinga, me bate!” Solange não deixa de ser ao mesmo tempo o agressivo diretor (em sexo e em tudo o mais) e o passivo espectador, que, nas imagens chulas, geme as ordens de Solange: “me xinga, me bate!” Sim: A dama do lotação fica no meio do caminho; não extrai de seus delírios críticos tudo o que podem render; faz concessões demais aos compromissos com a plateia de grande número; poucos anos depois, Ana Carolina fez Das tripas coração (1982) um número cinematográfico muito visceral em sua contemplação das torpezas de costumes. Ainda assim, o filme de Neville cresceu bastante ao longo dos anos: especialmente para os tempos de moralismo torto que ressuscitamos neste século XXI.
A história de Nelson Rodrigues não é das mais inspiradas que ele escreveu. Tem os elementos de seu universo: mas repete-se, superficializando. No entanto há situações que poderiam ser mais bem tralhadas; ou talvez Neville estivesse mais encantado com as possibilidades lúbricas de Sônia, que é o que de fato o filme é até hoje. Nuno Leal Maia, que chegou a fazer pornochanchadas e mesmo em Ato de violência (1980), de Eduardo Escorel, uma narrativa de denso sabor intelectual, navegava pelo marginalismo dos prostíbulos, é um parceiro abaixo de Sônia no filme. E até as tergiversações habituais de Jorge Dória no papel do sogro de Solange, não ofuscam o brilho único da atriz estelar. Sônia é A dama do lotação: a dama do lotação, um vulcão para quem sabe recordar-nos o quanto fomos jovens e tínhamos uma rebeldia maliciosa que explodia em bombas eróticas irrefreáveis.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br