Os Artificios da Inteligencia Antes da Inteligencia Artificial
Verdades e Mentiras de Orson Welles lanca novas luzes sobre a propria criacao cinematografica de Welles
Verdades e mentiras de Orson Welles (F for fake; 1973) foi a brincadeira final do cinema de Orson Welles, cineasta americano por excelência e também para-americano. Foi seu último trabalho lançado em vida: ele morreria em 1985 e não conseguiria concluir nem seu Quixote nem um outro filme que rodara concomitantemente com Verdades e mentiras. Artista que brigava naturalmente com a indústria e com seus próprios traumas criativos, Welles discute nesta sua opus-tumular a própria inocência da arte, sua ingenuidade nata, e o faz numa complexidade de montagem tão exigente quanto fascinante. Welles brinca com o cérebro do observador: jogando sobre vários dados e aforismos, que surgem na tela à maneira turbulenta de Welles, em planos rápidos, sucessivos, propõe uma aparente superfície sensorial de imagens e sons que acabam, por seu próprio ritmo, chegando ao assistente sob uma forma de tensão estética que não encontramos em lugar algum no cinema. Verdades e mentiras de Orson Welles é testamentário e autobiográfico em vários sentidos: um documentário que se falsifica para atingir certas verdades, ainda que feitas de coisas falsas.
O filme de Orson Welles se vale de excertos dum filme inconcluso do francês François Reichenbach em torno da figura do pintor e falsificador húngaro Elmyr de Hory. Numa certa base, o narrador de Welles acompanha a investigação cinematográfica de Reichenbach, que parece estar dirigindo um filme dentro do filme de Welles. Reichenbach é uma personagem e um ator em Verdades e mentiras: e um diretor de filmes. Welles, com sua imponência, toma o assunto de Reichenbach para si. O que Welles aproveita na estranha criatura de Elmyr é o lado obscuro da criação artística: tudo o que é belo é arte? há autenticidade na arte? A metáfora inicial de um mágico (o próprio Welles) diante duma criança, transformando uma moeda em chave, dá mesmo a chave para a interpretação: a arte como ilusão, o artista como prestidigitador. Um falsificador como Elmyr (que pinta quadros autênticos de pintores famosos) serve a Welles para os conceitos espalhados, sem regras, como numa areia movediça, mas com um cérebro rico e agigantado, ao longo de Verdades e mentiras: não serão todos os artistas falsificadores?
Lá pelo começo do filme, a voz altissonante de Welles, na pele do narrador central, conta que Elmyr pintou um quadro do holandês Kees Van Dongen (1877-1968): quer dizer, uma das falsificações pictóricas de Elmyr. Van Dongen o teria estudado minuciosamente e afirmado que ele, Van Dongen, o pintou. A autenticidade do falsário, que já rompera o método dos especialistas, agora chegava a seu auge: confundira o próprio artista original. Van Dongen se via, falsamente, num Elmyr: o artista era um falso?
Mais para o fim do filme, dá-se o inverso. Picasso vê um Picasso supostamente pintado pelo falsificador. Picasso diz: é um falso Picasso. Alguém lhe assopra: mas eu mesmo o vi pintá-lo, mestre. Picasso dá seu risinho sarcástico, que Welles simula: “Eu próprio posso pintar falsos Picassos”. O artista se falsifica a si mesmo, é um falsário nato?
Verdades e mentiras de Orson Welles é ele próprio um falso documentário para a imposição estética do gênio de Welles; e esta imposição estética tem tanto de magia (seu impulso inicial) quanto de inautenticidade e artificialismo. Décadas antes da exacerbação da inteligência artificial, Welles propõe o artista original como uma das formas dos artifícios da inteligência, talvez um pouco influenciado pelas leituras de Walter Benjamin (arrisca-se, aqui, a ter mais uma falsidade). A espaços, Welles utiliza a beleza e a sensualidade esquivas de sua então companheira, a modelo croata Oja Kadar; e a transforma, filmando seu caminhar por Ibiza, na Espanha, numa espécie de amante do pintor Pablo Picasso. Welles então é Picasso, não-literalmente: gênio por gênio.
Verdades e mentiras de Orson Welles, revisto depois de mais de quarenta anos dos primeiros contatos do espectador com este filme, lança novas luzes sobre a própria criação cinematográfica de Welles. Há um trecho em que Welles alude à sua aventura radiofônica pré-cinema em que, adaptando H.G. Wells, sua poderosa voz anuncia, como num jornal de rádio, uma invasão alienígena na terra, quer dizer, nos Estados Unidos, que era o centro da terra nos anos 30 e 40. Welles como um falsificador que no fim se retrataria em Elmyr? Em outro instante há sequências de Cidadão Kane (1941), as notícias em marcha para montar uma falsa cinebiografia dum magnata americano inspirado em Howard Hughes: Welles ainda e sempre o artista da montagem, o artifício junto da falsificação. Incompreendido e relegado a uma estante menor dentro do cinema do realizador de Mr. Arkadin (1955), Verdades e mentiras de Orson Welles é um dos mais perturbadores questionamentos da autenticidade artística já feitos. Quando o vi a primeira vez em 1979, logo me ocorreu o romance Os moedeiros falsos (1925), do francês André Gide. Acho que ainda me faz sentido: a moeda que abre o filme de Welles, a discussão de linguagem do corpo narrativo e até onde uma obra de arte é falsa ou verdadeira.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br