Encenar Preciso
Baronesa tem uma atmosfera documental, porque a realizadora partiu de criaturas reais, conviveu por alguns anos com aquelas pessoas
Baronesa (2017), filme ambientado numa favela de Belo Horizonte, descortina-se com uma cena de dança. Mas não é uma imagem aberta, como geralmente são as que querem expor a beleza duma dança, as relações do corpo com os outros elementos da cena. A câmara fecha seu olho sobre a cintura da garota que dança, esta cintura converte-se mesmo no próprio cenário, resume-o; mais ainda, entorta um pouco o ângulo, que se torna aparentemente oblíquo. O que vemos mais é a cintura, os quadris, mas um pouco, lá pelas tantas, os movimentos da bunda. Há na imagem um certo erotismo rude e transgressor. Plano-sequência: um plano fixo de certa duração. Toda a construção formal deste filme de Juliana Antunes é, em sua maior parte, feita de longas sequências lentas, a câmara demora-se na conversação ou nos gestos das personagens, os cortes parecem sempre hesitar, temer interromper a continuidade dos dramas.
Baronesa tem uma atmosfera documental, porque a realizadora partiu de criaturas reais, conviveu por alguns anos com aquelas pessoas, estudou suas ações e pensamentos, meditou em como usá-las transportando-as ao cinema. Mas sua realidade estética é mesmo ficcional: as pessoas com quem Juliana topou na favela constroem diante das câmaras outras personagens, as pessoas que interpretam estas personagens podem reproduzir suas vivências ou inventar vivências que talvez figurem somente em seu imaginário, mas o fato de o imaginário possível nunca fugir do universo daquilo que se vive realmente produz um autenticidade impressionante.
Enxutos em seus setenta e três minutos, disparando por vários veios narrativos sem perder a essência e a coesão duma proposta original, Baronesa apresenta muitas cenas em que há um êxtase visual quanto um profundo olhar para a captação do humano. A abertura do filme já é extasiante, com aquela cintura, quadris e bunda invadindo de perto os olhos do espectador. Mas há ainda a sequência do menininho (quase um bebê, barriga comprida provavelmente cheia de vermes), sentado numa pedra rústica à entrada dum casebre, olhando para um lado e para outro, mexendo às vezes na boca, sentimentos variados que a câmara perscruta, enquanto a voz duma mãe, fora de quadro, xinga outra criança: neste confronto da câmara com o garotinho temos um longo olhar de perplexidade e inquietação, o olhar da câmara. Depois a sequência do tiroteio que interrompe a conversação de duas amigas: a câmara dispara (sentido de correr, fugir) junto com as personagens, balançando a estrutura cênica e de montagem, a estaticidade dos planos fixos é substituída imperiosamente por movimentos de câmara desequilibrados, em desespero, a câmara é cutucada pelo pavor. Há a cena da mulher pondo tijolos para fazer sua casa. E, fecho de ouro, o bebê, tão minúsculo na imagem um pouco aberta, sozinho, emborcado na cama: é a solidão dum ser frágil, indefeso.
Numa das exibições do filme em Porto Alegre, Juliana disse que o que quer é continuar a fazer filmes. Precisa disto. Deseja ardentemente passar pelas barreiras culturalmente impostas a um cinema brasileiro, a um cinema brasileiro feito por uma brasileira (uma mulher que dirige), a um cinema brasileiro feito por uma brasileira que sexual e ideologicamente está fora das maneiras consideradas adequadas por aquilo que secularmente a burguesia estabeleceu. Baronesa é o ponto de partida do cinema de Juliana; e de muita gente de sua equipe de produção. E é um ponto alto, desde o início.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br