Preciso Ouvir o Portugus de Lobo Antunes
No meia-noite quem quer (2015) uma nova e soberba amostra da genialidade de Antnio Lobo Antunes
Certa vez o romancista português António Lobo Antunes, homem de viagens, confessou ao escritor brasileiro Juremir Machado da Silva que não podia ficar muito tempo longe de um local em que se falasse a língua portuguesa: quer dizer, não podia ficar muito tempo longe dos sons de sua língua, e esta necessidade linguística se plasma sem seus escritos. São as vísceras poéticas do idioma de Camões. Mais ou menos o que disse o desassossegado Fernando Pessoa: minha pátria é a língua portuguesa.
Não é meia-noite quem quer (2015) é uma nova e soberba amostra de sua genialidade. Como usa acontecer em seus mais recentes romances, o título é sempre uma provocação barroca, um sentido obscuro por trás de palavras mais ou menos comuns, uma sintaxe inusitada, um lusitanismo forte e tombado. Uma pessoa pode ser meia-noite? Nem todos. O “não” e aquele “quem” dão ao querer da possível criatura que narra uma estranheza com que o leitor tarda em dar: mistura-se uma coisa, “meia-noite”, uma coisa ainda que abstrata (tempo), com uma pessoa (o pronome “quem”).
Quem conta a história é uma personagem: a clássica narrativa em primeira pessoa, o “eu”. Quem é este “eu”? Uma mulher madurona que, às voltas com suas lembranças, está numa casa de praia da família. As habituais frases-fragmento da ficção recente de Lobo Antunes se antepõem à nossa visão. “—Não sabes estar quieta?” “Ouves o vento a ventar avó”. O estado em brasa da língua tal como a usa o romancista exige uma atenção amorosa para com esta língua da qual Lobo Antunes não logra apartar-se por muito tempo sem inquietar-se. Daí entendemos o umbigo que liga uma língua a um homem, uma linguagem a um artista. Lobo Antunes sabe como poucos em português evocar situações e sensações pelo uso elaborado de palavras e sintaxes, sobe e quebra, como o mar diante do qual sua língua romanesca está.
“e acredito em ti, ondas sempre em Peniche, os nossos maridos, o meu e o da Tininha, talvez se entendam um ao outro, mentindo-nos, mentindo-se, a gente as duas não, lado a lado e separadas, deixo-te o cachorro vadio para te fazer companhia enquanto atravesso a praia e vou subindo os penedos, a minha colega”
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br