Encenar uma Hist?ria eh Torna-la Real

Orson Welles poe em cena toda a sua classe e engenho de filmar

22/09/2022 13:51 Por Eron Duarte Fagundes
Encenar uma Hist?ria eh Torna-la Real

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Todos os filmes do americano Orson Welles têm, na sua instância-matriz, as características de um ensaio sobre as formas de contar uma história através do cinema. Uma questão de linguagem cinematográfica. Uma história imortal (The imortal story; Une histoire immortelle; 1968) é um de seus trabalhos menos lembrados e no entanto apresenta para o observador uma inserção histórico-estético-fílmica (os anos 60 do século passado, onde o cinema, notadamente na França, por Jean-Luc Godard ou Alain Resnais, discutia os próprios modelos de expor histórias em imagens, transformando muitas vezes o relato em pensamento) que o torna único por sua densidade e pela natureza de encenador grandiloquente e esquivo de Welles à luz desta natureza histórico-estético-fílmica (os anos 60).

Extraído da obra da escritora dinamarquesa Karen Blixen, a quem Welles admirava desde sempre, Uma história imortal traz os seres duma narrativa antiga, como uma crônica que fosse filmada em seu próprio tempo de ambientação, o século XIX e suas sofisticações agudas. É um pouco como um achado que Welles retira duma gaveta obscura de biblioteca arcaica. Quem aparece inicialmente para evocar a trama é um mercador vivido pelo ator espanhol Fernando Rey. Ele fala a seus circunstantes de um rico comerciante que vivia na Macau do século XIX. À medida que a fala de Rey escorre pela tela, Welles nos coloca diretamente em contato com a figura imponente do senhor Clay, o dito comerciante abastado, interpretado pelo próprio Welles, rotundo, misterioso, incógnito amiúde. O senhor Clay fala a seu serviçal Paul duma história perdida no tempo, a de um marinheiro que é convidado por um homem de posses para jantar na casa deste homem e, em lá chegando, é oferecido ao marinheiro receber cinco guinéus para copular com a bela e jovem esposa do homem rico já envelhecido. Paul diz que já ouviu esta história de um marinheiro em outro lugar. A história mesmo parece ter corrido de boca em boca ao longo da história. Como história contada, observa Clay, encorpando Welles, é somente história. Clay quer dar realidade a esta história. E o faz pelo meio que Welles sabe bem: encenando-a. A encenação dá realidade (corpo) a uma história que as palavras não chegam a ter.

Então Welles põe em cena toda a sua classe e engenho de filmar. Valendo-se da beleza e da arte da atriz francesa Jeanne Moreau (então no auge de seus quarenta anos), o cineasta filma uma travessa e perversa história de amor, que, ao mesmo tempo que foge às características grandiosas de seu cinema, a este cinema retorna pela eterna reflexão linguística que desde Cidadão Kane (1941) o realizador impôs como modelo cinematográfico. Clay no fundo é uma alma próxima daquele milionário que desaparece num voo no começo de Mr. Arkadin (1955). E do próprio Kane, difuso e incompleto nas lembranças de outras personagens. O cruzamento de planos eróticos do estrelismo então sexual de Jeanne é feito com a arte de montagem cinematográfica em que Welles é imbatível.

Realizado na França dentro do vagar itinerante do cinema de Welles, Uma história imortal tem duas versões de áudio, uma em inglês (é a que vi) e outra em francês. O filme foi recuperado em 2016, restaurado em 4 K, a partir dos negativos originais de câmara. Esta obra-prima (como ocorreria com O outro lado do vento, recuperado em 2018, mais de trinta anos após a morte do cineasta) serve para reatestar a própria imortalidade de Welles como artista: o ator que se impõe, o cineasta que revoluciona.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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