A Prova de Imbecilizar o Cinema

A prova de morte eh na verdade: dois filmes interligados pela presenca do psicopata automobilistico vivido por um zombeteiro Kurt Russell

26/08/2019 15:04 Por Eron Duarte Fagundes
A Prova de Imbecilizar o Cinema

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Quentin Tarantino e Robert Rodríguez, dois cineastas americanos, são amigos e curtem o interesse mútuo por um determinado universo cultural: as historietas literárias que se passam no submundo e a bagacerice comportamental dos bares deste submundo onde o circo e a fauna de indivíduos são de fato muito vivos e curiosos. Um projeto de ambos foi empreendido: dois filmes gêmeos, um dirigido por Rodríguez, outro por Tarantino, deveriam chegar simultaneamente aos cinemas, uma vertente cinematográfica (uma cultura avacalhada que altera o foco do bom-senso do espectador) de duas faces. Os desacertos e a imbecilidade próprios da indústria do cinema cindiram o curioso projeto de Tarantino e Rodríguez, fazendo com que os dois filmes seguissem destinos diferentes no mercado distribuidor internacional depois do fracassado lançamento simultâneo nos Estados Unidos.  A realização de Rodríguez  foi exibida no Brasil quase no calor da hora, À prova de morte (Death proof; 2007), de Tarantino, permaneceu muito tempo inédito nos cinemas daqui. Com atraso o espectador brasileiro pôde  desfrutar as discussões do confronto Tarantino-Rodríguez, que me parece ser um dos assuntos conceituais mais estimulantes do cinema americano moderno: descobrir como duas mentes fílmicas irmãs se dissolvem de maneira muito diferente naquele espaço do imaginário cinematográfico.

Mesmo assim, é interessante ver como Tarantino radicaliza cada vez mais algo que se transformou em desafio exemplar em seu cinema: à medida que suas personagens se tornam mais e mais debochadas e vulgares, à medida que o universo retratado se despoja de qualquer referência à sisudez analítica, Tarantino vai depurando como nunca seu estilo de filmar, usando da vulgaridade e a grosseria, dos tipos baixamente luxuriosos e medíocres; nunca como em À prova de morte Tarantino exercita um buscado vazio formal para o elevar a uma formulação estética próxima do alucinatório-gratuito. A sedução da violência em Tarantino vizinha com as inversões operadas no norte-americano Rob Zombie e com as estranhas encenações perversas de David Cronenberg, mas é profundamente original na maneira como o cineasta manipula e funde os elementos cinematográficos.

Depois de tanta mesmice filmada com mão vesga por tanto incompetente, Tarantino recupera no final o gosto do espectador pelas filmagens impiedosas da velocidade do automóvel e do impacto desta velocidade sobre as fragilidades do pretensioso corpo humano. A vertiginosa ação da sequência ao final em que a criatura de Kurt Russell é caçada em perseguição automobilística escandalosa e depois trucidada pelas mulheres a quem antes ele maltratava insistentemente (a inversão da maldade), é uma peça antológica daquilo que se poderia definir como “uma aventura do olhar”. Antes disto, À prova de morte traz, por exemplo, um longo plano-sequência que acompanha, numa refeição, num restaurante, as conversações cruas de três mulheres; a câmara se esgueira por trás delas, pelos lados, pela frente, desliza aqui, ajeita-se ali, espia no fundo do plano a rua mais além do restaurante, o movimento da câmara é pequeno e contínuo, os diálogos (soltos) se colam na imagem móvel (aqui o movimento é sempre discreto, nunca escandaloso); uma estilizada peça de câmara que contrasta com a ação grandiloquente dos carros logo depois, mas o plano-sequência de Tarantino é americaníssimo, foge à rigidez e à dinâmica ou estrutura europeias, as diferenças se localizam na expressão verbal e facial das personagens e dos atores assim como na forma de os atores se estabelecerem dentro do quadro.

À prova de morte é na verdade: dois filmes interligados pela presença do psicopata automobilístico vivido por um zombeteiro Kurt Russell. No primeiro destes filmes o psicopata acaba amassando com seu carro o carro e os corpos de algumas garotas que o filme acompanha num bar nas primeiras cenas. Preso, o homem da lei julga que não pode decidir de sua condenação porque não está clara sua intenção de matar e adiciona a teoria do orgasmo que nasce do sangue, da morte, da violência: o psicopata teve com seus gestos o orgasmo que de outra forma não teria. Na intersecção dos dois filmes (intersecção que já é o início do segundo filme), um trecho em preto-e-branco. Voltando as cores, segue o segundo filme, aquele em que no final o psicopata se dá mal, mas as anteriores vítimas (outras mulheres em muitas coisas semelhantes às da primeira parte do filme, mas que também no início da segunda parte são castigadas pelo delirante-doido e depois viram o jogo, passando de caçadas apavoradas a caçadoras sádicas) assumem o comportamento do psicopata, ou seja, a psicopatia vence com sua intensa amoralidade.

Se em Planeta terror (2007) Rodríguez fez um filme digestivo, simplificado e sem ousadia, em À prova de morte Tarantino mostra o quanto a cabeça de um cineasta é mais importante que qualquer assunto retratado. Tarantino como ator aparece em seu próprio filme (desfrutando do vulgar-sexual de suas criaturas), assim como aparecia no de Rodríguez. Rose McGowan, que estava em Planeta terror, reaparece em À prova de morte. Talvez não haja mesmo diferenças substanciais entre as personagens, o meio social, as perspectivas que vão cercando os dois filmes que na verdade são duas faces de uma mesma maneira de pensar o cinema (pode-se observar que certos espectadores odeiam o cinema de Tarantino pelas mesmas razões que odeiam o cinema de Rodríguez, assim como o amor de outros espectadores pelos dois cineastas busca explicações assemelhadas ao falarem de ambos). Na experiência deste comentarista, todavia, a diferença entre os dois parte de um conceito de montagem, que é a essência do cinema; e o conceito de montagem passa pela junção dos planos, é claro, mas não é somente isto, associa-se à montagem de todos os elementos que interessam os cineastas —se os elementos de interesse de Tarantino e Rodríguez são idênticos, a personalidade cinematográfica de um e de outro se estabelece pela forma como cada um monta estes elementos.

O gosto de vadiagem que Tarantino extrai de suas personagens (especialmente das mulheres da primeira parte do filme, com algumas bocas e bundas tortuosamente chulas e rasteiras) é muito mais denso e vivo que aquilo a que seu parceiro Rodríguez pode aspirar em seus filmes. E aqueles blocos em delírio das mulheres da segunda parte trucidando um alvo antológico como Kurt é uma das delícias cinematográficas do século XXI.

À prova de morte é, infelizmente, um dos trabalhos menos evocados de Tarantino; no entanto é o momento de maior felicidade estética de seu cinema.

 

(Eron Duarte Fagundes –eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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