O Escritor e a Polemica
Aldous Huxley foi um esteta da literatura. Mas, diversamente de Henry James, foi um esteta que nao desdenhava as impurezas da vida
Aldous Huxley foi um esteta da literatura. Mas, diversamente de Henry James, foi um esteta que não desdenhava as impurezas da vida. Sombrio, perigosamente sombrio em seus romances intelectualizados, ele fez brotar de sua pena dois ensaios perturbadores que são complementares e habitualmente andam juntos nas edições: As portas da percepção (The doors of perception; 1954) e O céu e o inferno (Heaven and hell; 1956). Como quase tudo o que ele escreveu, causou desconforto. Perturbou o bem-estar da sociedade burguesa a que Huxley pertencia. Como o Flaubert descrito no monumental estudo de Jean-Paul Sartre, Huxley foi o burguês que, pela arte, desafiou as normas: ainda que esteta de saber e sensibilidade, de que alguns, como o crítico Otto Maria Carpeaux, zombavam —segundo Carpeaux, tudo o que Huxley expelia estava na Enciclopédia Britânica.
(Como se sabe, não é bem assim. Todavia, é uma briga de gigantes: Carpeaux e Huxley. Nós, da planície, contemplamos e extraímos.)
Em As portas da percepção, um pouco inspirado nos textos visionários do poeta William Blake, de onde ele extraiu o próprio título do livro, Huxley descreve, com aguda crueza e boa dose de poesia em texto, sua experiência ao ingerir “quatro decigramas de mescalina, dissolvidos em meio copo d’água”. Mescalina é uma droga que estava em uso no coração dos anos 50 e provocava alterações de visão. Então, tomando-a, Huxley sentou-se para esperar pelos resultados. O que se segue nas páginas do ensaio semidocumental de Huxley é um panorama das coisas ou entes com que deparou ao longo da experiência. Suas conclusões sobre a experiência de viver na terra no indivíduo humano, a partir do que lhe vem de estar sob o efeito da mescalina, são às vezes aterradoras e nada ficam a dever aos aspectos mais sombrios da parte ficcional de sua literatura. Diz Huxley, a certa altura:
“Vivemos, agimos e reagimos uns como os outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência, debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua própria visão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias —tudo isso são coisas privadas e, a não ser através de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiência, mas nunca as próprias experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares.”
Em suas reflexões, Huxley pretende mostrar o paralelo entre o ser sob droga e uma das epidemias mentais do século XX e XXI, a esquizofrenia. Mostra que num e noutro caso a explicação essencial está na química que se insere no cérebro: abre-se a percepção para um paraíso inimaginado com a introdução da substância em nosso sistema nervoso, mas aos poucos o desequilíbrio faz com que o lado infernal prevaleça: “A esquizofrenia tem seus paraísos, de par com seus infernos e purgatórios.” E relata o caso da mulher dum amigo. E aduz: “Os intervalos felizes tornaram-se mais raros, mais breves, até que, finalmente, desapareceram de vez; só restou o horror...” A crueldade mental da literatura de Huxley desde seus romances.
O céu e o inferno, publicado dois anos depois, lança novas luzes reflexivas (refletores intelectuais) às descobertas empíricas de As portas da percepção. E aprofunda a questão alimentar e química, ao examinar o jejum como fonte visionária: desprovidos de certas substâncias necessárias a nosso estado biológico, vemos coisas. Um pouco menos cruel que o ensaio mais direto que é As portas da percepção, o complemento que é O céu e o inferno não deixa de enveredar pelas nossas partes assustadoras: “O mundo das sombras, habitado por alguns esquizofrênicos e neuróticos, lembra de perto o mundo dos mortos, tal como é descrito em algumas religiões mais antigas.” Um autêntico e delirante livro dos mortos.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br