O Romancista Jos? Geraldo Vieira por seu Sorinho-Neto, o Escritor Andr? Aubert
Um dos prazeres de quem gosta de literatura eh descobrir individuos atuais que privaram, de alguma maneira, com um escritor que se admira
Entrevista Dada a Eron Duarte Fagundes
Um dos prazeres de quem gosta de literatura é descobrir indivíduos atuais que privaram, de alguma maneira, com um escritor que se admira. Lembro as conversas com o escritor e historiador gaúcho Décio Freitas (1922-2004), um homem que conviveu com intelectuais e políticos importantes do século XX e cujas histórias tinham o encanto de nos aproximar de criaturas distantes no tempo e no entanto próximas por certas afinidades literárias ou de pensamento. André Caramuru Aubert é sobrinho-neto do romancista José Geraldo Vieira, um dos grandes nomes de nossa literatura que, infelizmente, não pertence há décadas aos estudos curriculares; José Geraldo faleceu em 1977. André é também escritor, o que facilita as perspectivas; é paulista de Ubatuba, nasceu em 1961. Nesta entrevista, dada por email, André fala basicamente de sua visão do universo de José Geraldo e do que se lembra de sua convivência familiar com o genial romancista de “A ladeira da memória” (1950). Ao ser estimulado a falar da arte de seu tio-avô, André exibe uma visão do gosto literário muitas vezes escanteada no Brasil e que talvez explique, em parte, a má vontade dos estudiosos oficiais para com o texto de José Geraldo Vieira. (Eron Duarte Fagundes)
Pergunta: Tu és escritor e tradutor. Duas atividades em que se destacou um de teus antepassados ilustres, o romancista José Geraldo Vieira. Que lembranças familiares tens de José Geraldo ou de alguma conversa com ele? Qual tua relação de parentesco com ele?
André: Eu me lembro bem de José Geraldo, mas não muito de conversas com ele. Ele não dava muita bola para crianças e, quando morreu, eu estava apenas entrando na adolescência (embora já tivesse lido um de seus livros, “Terreno Baldio”). José Geraldo era um intelectual do jeito antigo, daquelas figuras não acadêmicas, de saber enciclopédico, para quem nada que não se referisse à arte ou à alta cultura interessava. Crianças não o interessavam. Eu me lembro de uma figura serena, delicada, sempre fumando com um cachimbo. Mas conversa, mesmo, com conteúdo, não tive.
José Geraldo foi casado com minha tia-avó, a também romancista e crítica literária Maria de Lourdes Teixeira (ela também uma bela romancista, também esquecida, com dois Jabutis na bagagem).
Pergunta O fato de seres também escritor e tradutor guarda alguma relação ou influência com a obra de José Geraldo?
André: O que escrevo tem, é natural, múltiplas influências. E a obra de José Geraldo é uma delas. O que mais me marcou, dele, foi essa questão com a erudição que ele tinha. Como meu tio-avô, não acredito em literatura (em arte) puramente intuitiva, que não seja alicerçada em muitas leituras, muitas referências.
Pergunta: José Geraldo foi muito lido e objeto de ensaio nos anos 40 e 50; gente importante como Álvaro Lins e Antônio Cândido o estudou. Quando ele morreu, em 1977, já se falava pouco dele. Hoje em dia, então, ele não está no currículo escolar, como outros pares, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, por exemplo. Alguns se queixam do anacronismo e das dificuldades da linguagem barroca de José Geraldo. Tu, também um homem de letras, como vês esta questão?
André: Dentre os muitos críticos que escreveram mais tardiamente sobre José Geraldo, o mais cruel foi Antônio Cândido, e um dos mais agudos, Alfredo Bosi. Comecemos pelo começo: por que, quando morreu, José Geraldo, como você bem apontou, estava quase esquecido? Penso nisso há anos, e confesso não ter uma resposta satisfatória. Mas tenho palpites. O primeiro: ele era um autor cosmopolita, culto, que exigia cosmopolitismo (ao menos de alma) e cultura de seus leitores, e estávamos em um momento em que o Brasil procurava valorizar o sertão, o sertanejo, o homem do povo. José Geraldo se definia como alguém de esquerda, foi até filiado ao PCB. Mas não era alguém que, na minha opinião, desse o devido valor a alguma coisa como “cultura popular.”
Penso que, para ele, ser de esquerda era principalmente fazer com que todos, democraticamente, pudessem ouvir Schoenberg e ler Joyce, e nem tanto dar ao samba do morro ou à literatura de cordel o mesmo peso. Não sei se José Geraldo assumiria ostensivamente essa posição, mas é pelo menos assim que eu o vejo. Você fala em “dificuldades da linguagem barroca.” De certa forma, é isso mesmo. José Geraldo não buscava as facilidades da linguagem simples. Nabokov escreveu que todo bom livro deveria levar o leitor, mais de uma vez, ao dicionário. José Geraldo compactuava dessa ideia. Mas, ora, você quer alguém com linguagem mais difícil do que Guimarães Rosa? E nem por isso o autor de “Sagarana” foi esquecido...
Um outro palpite, esse de minha tia Maria de Lourdes, é simplesmente que José Geraldo, a partir de um certo ponto da vida, ficou tão absorvido, pela atividade de crítico de artes plásticas, que simplesmente parou de se dedicar à atividade de romancista. Há uma verdade cronológica nisso, porque suas obras mais conhecidas saíram até meados dos anos 1950, e daí houve um intervalo longo, até 1961, quando saiu “Terreno Baldio”. E só bem depois, em 1975, veio o derradeiro, um romance que eu reputo menor, “A mais que branca”. Nesse meio tempo, ele foi o braço direito de Cicillo Matarazzo na criação da Bienal de arte de São Paulo, e o editor da principal revista de arte do período, a Habitat. Quanto a mim, acho que isso pode ter tido um peso, mas que o primeiro palpite é mais sólido.
Voltando agora aos críticos que mencionei acima. Antônio Cândido, talvez ainda sob o peso do apelido de “Chato Boy” que Oswald de Andrade (amigo e admirador de José Geraldo) lhe dera, considerou a obra de José Geraldo como o pináculo do decadentismo burguês, que só conseguia falar de gente rica e da Europa, que não olhava para o Brasil real. No fim da vida, Antônio Cândido se arrependeu, disse que havia sido muito duro com José Geraldo, que este havia sido, sim, um belo romancista. Mas, ora, no olhar crítico de Antônio Cândido, havia aquilo que foi, de fato, o que relegou José Geraldo ao esquecimento: ele não falava do Brasil, do povo brasileiro, dos pobres, do sertanejo, do proletariado. Mas a concepção de arte, de José Geraldo era justamente outra, na linha de Borges e de Nabokov: a arte é boa quando é arte, não quando fala disso ou daquilo. Isso ou aquilo são apenas suporte, não obrigação.
A crítica de Alfredo Bosi, por outro lado, me parece mais aguda. Ele admitia a força e a genialidade dos romances de José Geraldo, mas chamava a atenção para um problema: os dramas vividos pelos personagens existiam apenas na arte e se resolviam somente na arte. Não há problemas financeiros, problemas práticos. Há esse universo artístico, esse sol estético, que se impõe sobre tudo, e é em volta disso que as vidas orbitam, experimentam seus dramas, sofrem, buscam saídas. Não é o que acontece em “A Mulher que fugiu de Sodoma”, justamente o menos “joségeraldiano” dos grandes romances do autor. Mas percebe-se esse traço claramente nos seguintes, de “A Ladeira da Memória” em diante. Isso não tira, no entanto, o encanto de seus livros, e não justificaria o esquecimento.
Meu palpite, enfim, é que realmente o ostracismo de José Geraldo se deve mais ao ambiente cosmopolita de seus livros, com personagens que circulavam com naturalidade por Paris, Londres e Nova York, num Brasil que começava a olhar para suas entranhas, fossem elas o sertão ou a favela. Às vezes tenho a impressão que, se a autores americanos e europeus é permitido falar de tudo, de qualquer cultura, em qualquer tempo e lugar, aos do terceiro mundo autoriza-se apenas escrever sobre seus quintais. Mas, ora: José Geraldo era um sujeito cosmopolita. Nasceu rico, estudou em Paris e Berlim, foi amigo de Picasso e Braque, hospedou Faulkner em seu apartamento. Esse era o universo que ele conhecia e sobre o qual sabia escrever. Os piores momentos dos livros de José Geraldo, na minha opinião, estão quando ele tenta reproduzir as falas populares, como o das pessoas dentro do cortiço em que se transformou o antigo casarão de “Terreno Baldio”: é impossível não deixar de notar uma certa artificialidade na linguagem, um desconforto em reproduzir um ambiente estranho ao autor.
Pergunta: No aspecto que citas como a razão central do esquecimento da obra de José Geraldo, referes o cosmopolitismo, o fato de seus romances se circunscreverem ao universo das classes sociais privilegiadas. Ocorre-me um paralelo com o cinema brasileiro. O cineasta paulista Walter Hugo Khouri foi, ao longo de sua vida, esnobado por alguns críticos por
argumentos semelhantes: cosmopolitismo, deter-se na alta burguesia. Seria este um traço reiterativo da precária discussão cultural brasileira?
André: Sem querer pontificar, acredito que este seja um bom palpite. Éramos provincianos e continuamos a sê-lo. O Brasil tem características únicas, e como tudo que é único, tem lados positivos e negativos. Somos uma nação de dimensão continental com uma riqueza cultural enorme, o que é ótimo. Por outro lado, esse gigantismo às vezes parece nos bastar. Você é obrigado a ser cosmopolita (e a falar mais de uma língua) em países pequenos como Holanda ou Hungria. Em Portugal, o aluno sai do ensino médio fluentemente trilíngue. No Brasil poucas pessoas são bilíngues. E é obviamente importante que todo o conjunto da sociedade seja abordado pelos diferentes autores de literatura. O curioso é que alguns segmentos sejam vedados, a não ser que como alvos de crítica social explícita. E aí eu gosto de me lembrar do Nabokov, que quando perguntado, numa entrevista, que coisas mais o irritavam, respondeu: "clubes, música ambiente e literatura com missão social." Você deu o exemplo dos filmes do Khouri, eu acho que faz todo o sentido.
Pergunta: Falaste de Oswald de Andrade e sua defesa da novelística de José Geraldo. Não fosse o desencontro temporal, Oswald seria alguém da época que eu gostaria de entrevistar; no tópico da literatura de José Geraldo, eu confrontaria Oswald com uma de suas frases mais fortes. Eis: "O que distingue José Geraldo Vieira dos búfalos do Nordeste, dos coroinhas do Rio e dos soturnos cabotinos do Sul, é a qualidade." Ao longo das décadas, tenho feito minha própria identificação dos búfalos, dos coroinhas e dos cabotinos. Não posso entrevistar Oswald, mas te pergunto (a ti, que és paulista como Oswald): os búfalos, os coroinhas e os cabotinos ainda estão por aí?
André: Claro que continuam. Mudam um pouco os temas, mas a essência prossegue. Depois da queda do Muro de Berlim, a agenda migrou parcialmente das questões da luta de classes e de socialismo versus capitalismo para debates identitários, de minorias etc. Veja o exemplo do atual linchamento da figura de Monteiro Lobato, que virou, simplesmente, "racista." Você pega uma das figuras mais brilhantes, importantes e interessantes da história do Brasil, com contribuições gigantescas, que encarou cadeia por conta de suas convicções, que se desfez do patrimônio herdado para investir na edição de livros, que teve a ousadia de respeitar o cérebro de seus leitores mirins... Enfim, você pega alguém como o Monteiro Lobato, (que naturalmente tinha contradições, porque todas as pessoas brilhantes as têm) e reduz tudo a uma lacração simplista, anacrônica e raivosa. Sim, não resta dúvida: búfalos, coroinhas e cabotinos continuam a postos!
Pergunta: Sobre o homem José Geraldo. Fala de casamento e filhos dele. Manténs alguma espécie de relação com os descendentes do teu antepassado escritor?
André: Mantive contato com minha tia-avó até a morte dela, com o filho (o também escritor Rubens Scavone, pioneiro no Brasil no gênero de ficção científica), e mantenho com o neto, o fotógrafo Márcio Scavone. Também tive contato com o filho caçula de José Geraldo, Pedro. Mas nada além disso.
Pergunta: Fala-me de tua própria obra literária e das características dela tal como a vês.
André: É difícil falar de minha obra. Apenas para ligá-la a José Geraldo, algo que herdei dele foi o gosto por personagens eruditos. Meus protagonistas são professores, arqueólogos, escritores, e as tramas incluem as reflexões que isso implica. Mas isso não veio só de José Geraldo, claro, mas também de outros autores que me marcaram, como Borges, Thomas Mann, Nabokov, Alejo Carpentier, W.G. Sebald... No meu romance “Poesia Chinesa”, por exemplo, a história toda flui como fluxo de consciência de um professor que está dando um curso sobre poesia clássica chinesa na faculdade, com situações dentro e fora da sala de aula. No romance “A Cultura dos Sambaquis”, o protagonista é um ex-arqueológo e ex-militante de esquerda na época da Ditadura, que vive em Iguape e escreve para um jornal local. E assim por diante... Mesmo meus poemas são repletos de referências.
Pergunta: José Geraldo foi também médico. Lembras alguma coisa das atividades dele nesta profissão?
André: José Geraldo foi um pioneiro na radiologia brasileira, na época uma especialidade nova que, por exigir equipamentos caríssimos, era acessível apenas a quem tinha muito dinheiro, que era o caso dele. O tio pagou por tudo e, quando José Geraldo voltou para o Brasil, após a pós-graduação em Berlim, o equipamento veio junto no navio.
José Geraldo exerceu simultaneamente medicina e literatura por muitos anos, até que foi para Marília, no interior de São Paulo, na época uma região sertaneja, remota, numa espécie de autoexílio, para se afastar do Rio, do casamento e da mulher por quem estava apaixonado, minha tia Maria de Lourdes, e tentar organizar as próprias ideias (esse evento está contado, romantizado, em “A Ladeira da Memória”, onde Marília é Hacrera e Maria de Lourdes, Renata). No regresso de Marília, José Geraldo acabaria por vender o equipamento e abandonar a medicina, ao mesmo tempo em que trocaria, logo depois, o Rio por São Paulo e a primeira mulher por tia Lourdes.
Mas, não custa lembrar, o pioneirismo na radiologia acabaria custando a vida dele, porque não se sabia, no começo, dos riscos e cuidados necessários com a radiação, e o câncer que o matou teve origem aí.
Pergunta: Fora a questão de parentesco, em que posição colocarias José Geraldo dentro da literatura brasileira? Qual romance dele preferes?
André: Acredito que José Geraldo Vieira tem um peso enorme na literatura brasileira. Sem favor algum, é um dos grandes. E assim era visto, quando estava no auge, colocado lado a lado com nomes como Jorge Amado e Érico Verissimo (ele foi amigo de ambos). Como bem apontou Oswald de Andrade, José Geraldo era o mais cosmopolita de nossos escritores. Poderíamos acrescentar que, na época dele, era também o mais erudito. Isso tudo acabou pesando contra, mas, para sermos justos, são traços excepcionais, que o colocam num lugar único.
É difícil eu apontar um livro predileto. Gosto muito de “Terreno Baldio”, o primeiro que li. Mas “Ladeira da Memória” é excepcional, e até usei personagens e paisagens desse livro em meu romance “Cemitérios”. “O Albatroz” é uma obra-prima, de modo que minhas preferências ficam entre esses três livros. “Carta a minha filha em prantos” é uma pequena joia, um livro que nasceu de uma carta que de fato José Geraldo escreveu para uma de duas filhas (Rosa) quando estava vivendo em Marília e, ela, em crise com a possibilidade de se casar com um rapaz que iria lutar na guerra da Europa. Mas gosto também de “Território Humano”, especialmente porque a primeira parte do livro é a autobiografia mais acurada da infância do autor. Me agrada menos “A mulher que fugiu de Sodoma”, não por ser um livro ruim, longe disso, mas por ser o menos “joségeraldiano.” “A Quadragésima Porta” é ambicioso, o livro mais cosmopolita, mas, passando longe do Rio e da história pessoal do autor, acaba perdendo um pouco da força que ele mostra em outros livros. “A Túnica e os Dados” ecoa um pouco o cristianismo da infância do autor e, pelo menos para mim, vale mais pela descrição precisa da cidade de Santos exportadora de café do começo do século XX do que pela história em si. E “A mais que branca”, finalmente, o mais tardio, escrito treze anos depois do anterior e quando o câncer já o consumia, é um bom livro, mas traz um José Geraldo que já não me parece ter a energia dos seus primeiros anos. Mas ele escrevia muito bem, de modo que qualquer livro de José Geraldo, mesmo os “menores”, são deliciosos.
Pergunta: José Geraldo nasceu na ilha dos Açores. Poderias dizer-me onde ele morou ao longo da vida e as épocas? Se não me falha a informação, sei que ele morou no Rio e em Paris.
André: Na verdade, José Geraldo nasceu no Rio, de família paterna açoriana. Teve um irmão gêmeo que morreu ainda bebê. A família materna era de fazendeiros de café no Vale do Paraíba, já decadentes quando ele nasceu (a inspiração para a família de Mário em “A mulher que fugiu de Sodoma”, e também para a fazenda do Grotão, de “A Ladeira da Memória”). Tanto o pai quanto a mãe de José Geraldo morreram quando ele era pequeno, com um curto intervalo entre as duas mortes. Com isso, ele foi adotado pelo tio paterno, um imigrante açoriano que evoluiu de comerciante de tecidos a um dos pioneiros da indústria têxtil no Rio (e no Brasil), e que ficou riquíssimo.
José Geraldo, assim, cresceu muito rico, morando no Rio mas frequentando a Europa desde cedo. Para se ter uma ideia, adolescente ele já tinha carro, uma baratinha, no Rio da década de 20, um luxo para muito poucos. Depois de formado em medicina no Rio, seguiu para Paris e depois Berlim, onde fez pós-graduação. Mas, mesmo depois de voltar ao Brasil, ia à Europa regularmente, pelo menos uma vez por ano, e frequentava a vanguarda cultural europeia. Já casado com minha tia, ele morou em São Paulo. Primeiro em um apartamento no Largo do Arouche, perto da Academia Paulista de Letras, da qual ele e minha tia eram membros, depois em um sítio em Itu e, no fim, em um sítio em São Roque.
Quando voltou dos estudos na Europa, José Geraldo se casou com a prima (a filha do tio adotivo), um casamento que foi sendo planejado pela família desde a infância dos dois, e que acabou acontecendo, para ele pelo menos, um pouco por inércia. Ele gostava da prima, havia uma amizade verdadeira desde a infância de ambos, mas, creio, a relação jamais foi de uma verdadeira paixão. Quando conheceu Lourdes, José Geraldo de fato se apaixonou (de novo, isso está em “Ladeira da Memória”). Então, quando finalmente decidiu se separar da primeira mulher, com todas as implicações sociais (afinal, era a década de 50), a culpa dele foi enorme. Foi por isso que ele decidiu deixar todos os bens que possuía para a ex-mulher e os filhos, e veio para São Paulo sem nada, com uma mão na frente e outra atrás, e sem nem mesmo praticar mais a medicina. Daí para a frente, até morrer, José Geraldo viveu de escrever para jornais (principalmente críticas de arte, mas também de literatura), de dar aulas (foi professor na Casper Líbero), de trabalhos avulsos (como a participação na montagem da Bienal de Arte de SP). Uns dez anos antes de morrer, chegou a vender uma gravura, que ganhara de Picasso, para comprar o sítio, em Itu, em que foi morar com minha tia.
Pergunta: A literatura de José Geraldo se caracteriza pela criatividade da linguagem e por uma trabalhada erudição. Se tens como lembrar, nas conversas familiares ele era assim como em seus textos, nas formas da fala, nos assuntos, ou descia também ao cotidiano?
André: Todo o cotidiano de José Geraldo era marcado pela erudição e pela arte. Ele vivia esse, e nesse universo. Absolutamente não se interessava por outro assunto. Tenho uma história que mostra bem como ele era. Certa vez, minha mãe, ainda adolescente, perguntou a José Geraldo o que ela deveria fazer para escolher um namorado. E a resposta foi: “leve o candidato a um museu e ouça os comentários dele sobre as obras, aí você saberá se o rapaz é adequado.” Bem, devo dizer que meu pai (a quem minha mãe só viria a conhecer anos depois) passaria fácil em qualquer “teste do museu”, o que em nada garantiu um casamento feliz e duradouro...
Pergunta: O componente poético é um dado da escrita de José Geraldo. Mas, me parece, em vários de seus livros, o componente autobiográfico se insere. Já que és da família de José Geraldo, poderias apontar-me, neste e naquele livro, personagens e situações que reproduzem pessoas e fatos da vida do escritor?
André: Em parte, creio que já respondi a essa pergunta nas questões anteriores. Os melhores livros de José Geraldo são, na minha opinião, os que contém mais elementos autobiográficos (a exceção é “O Albatroz”, um dos melhores e totalmente ficcional). Em primeiro lugar, em todos os livros em que escreve sobre a alta sociedade carioca do começo do século XX, com um pé no Brasil e outro na Europa, José Geraldo está falando do mundo onde cresceu e que conheceu por dentro. Mas sua infância está muito bem descrita na primeira parte de “Território Humano”. A crise existencial e matrimonial, com o exílio em Marília e o começo do relacionamento com Maria de Lourdes Teixeira, está em “A Ladeira da Memória”. E a vida na Europa e o relacionamento com o tio aparecem muito bem no personagem João Paulo de “Terreno Baldio”.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br