O Tambor da Rebeldia

O tambor, o filme, aclara mais a alegoria contida no livro de Gunter Grass

04/05/2020 14:22 Por Eron Duarte Fagundes
O Tambor da Rebeldia

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No começo de O tambor (1959), o romance do alemão Günter Grass, o narrador adverte: “Admito: sou um interno de um hospício.” Assim, o leitor é introduzido com mais naturalidade nas demências que o livro conta. O cineasta alemão Volker Schlöndorff rodou seu mais prestigiado filme, O tambor (Die Blechtrommel; 1979), a partir da narrativa de Grass, que ajudou a escrever os diálogos do filme (o roteirista francês Jean-Claude Carrière, acostumado com excentricidade por sua parceria com o realizador espanhol Luis Buñuel, foi outro colaborador de letras de Schlöndorff). O tambor dividiu a Palma de Ouro de Cannes em 1979 com Apocalypse now (1979), do americano Francis Ford Coppola, criando a cisão estética dos possíveis barroquismos cinematográficos da época.

O tambor, o filme de Schlöndorff, age um pouco como se o narrador (que se traveste de personagem central) estivesse dirigindo as cenas de dentro dum manicômio. Mas isto, no filme, surge como uma alegoria: o espectador não vê o hospício nem o enfermeiro que observa o doido contador de histórias de Grass; isto é, Schlöndorff não materializa nem torna diretas as frases iniciais do romance de Grass. O filme, que segue o livro na utilização do protagonista como narrador, vai começar na cena da avó da personagem-narradora, a avó está num campo de batatas e em situação estranha acolhe sob suas saias aquele que possivelmente seria o avô do narrador e estava ali fugindo de alguns soldados. Alegoria. O tambor, o filme, aclara mais a alegoria contida no livro de Grass. Oskar, o garoto que após uma queda numa escada parou de crescer, pode ser a perplexa visão da infância para o perturbado mundo adulto (a descoberta dos adultérios de sua mãe o paralisam, a ele, Oskar, que deposita sobre tudo seus desesperados e agudos grandes olhos claros), mas simboliza sobretudo a infantilidade do período nazista, que Schlöndorff refere em sua fábula com uma ferocidade crítica e política mais transparente que aquelas curvas sinuosas e muitas vezes obscuras cridas por Grass. Vivendo entre dois pais (um alemão e um polonês) numa região da Europa Central habitada antes por caxúbios, Oskar é um conflito e uma confluência de etnias, o que sobrecarrega sua excentricidade; morta a mãe, morto seu pai polonês, o pai alemão traz para casa uma jovem que coabita com os dois, Oskar e seu pai; o filho que ela gera pode ser irmão ou filho de Oskar. É este filho quem, no fim do filme, atira um naco de terra em Oskar, fazendo com que o protagonista caia na sepultura onde o pai de Oskar (o alemão) está sendo enterrado; esta queda na sepultura se opõe à queda na escada no início do filme, pois se cair na escada obstruiu o crescimento de Oskar, resvalar na sepultura deflagrou o recomeço do crescimento interrompido aos três anos de idade. Com o fim do nazismo, o povo alemão estaria voltando a crescer, segundo Schlöndorff.

Oskar, com seu tambor incômodo e seus gritos que quebram vidros, é o toque de rebeldia numa época de conformismo. Ele não compreende as motivações dos adultos: então recusa-se a crescer. No circo, topa seus iguais: os anões. É uma anã que lhe dá as verdadeiras carícias amorosas: a esposa de seu pai era somente libertinagem. Mas esta anã morre estourada por uma bomba quando pediu um tempo para tomar café antes da retirada. A magia extraordinária que a encenação de Schlöndorff atinge em várias sequências de O tambor é uma fusão de certas coisas do sueco Ingmar Bergman com outras do italiano Federico Fellini (quando Noites de circo, 1953, se encontra com Ginger e Fred, 1985).

Depois de sua estreia com O jovem Törless (1966), extraído da ficção de Robert Musil, Schlöndorff chegou a ser estigmatizado como adaptador de literatura. Uma destas adaptações arriscou-se no universo do romancista francês Marcel Proust: o resultado foi Um amor de Swann (1984), um filme tão refinadíssimo quanto preguiçoso e sonolento. Mas O tambor é uma realização pessoal e certamente uma das obras que marcaram a década de 70.

(David Bennent, então com onze anos de idade, tem um desempenho luxuoso como o estranho Oskar. Angela Winkler vive com sensualidade torpe e neura em alta sua problemática mãe. Seu pai germânico tem em Mario Adorf a grossura exigida de comportamento. E Daniel Olbryschi é um pai polonês discreto mas preciso; Daniel foi um ator característico do diretor polonês Andrzej Wajda, foi visto como um dos três polos da mentalidade polonesa em A terra prometida, 1975, outra notável explosão barroca dos anos 70 no cinema).

Este tambor rebelde que Oskar joga fora para poder crescer, depois de sua queda na sepultura do pai, tem a força retumbante da permanência. Nos ouvidos e nos olhos do cinema para todo o sempre.

P.S.: O tambor teve sua mais recente exibição em Porto Alegre em 13 de abril de 2009, na Sala Redenção, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, permitindo o reencontro com um dos mais originais trabalhos do cinema nos anos 70. Schlöndorff é contemporâneo duma geração privilegiada de cineastas alemães, de onde despontam indivíduos como Alexander Kluge, Werner Herzog, Wim Wenders e Rainer Werner Fassbinder.

 

(Eron Duarte Faghundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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