Vida, Rebeldia e Morte de Um Homem de Llosa
Saiba que o livro O Sonho do Celta merece ser qualificado como um monumento da literatura de hoje
Não é novidade na extensa e festejada obra do romancista peruano Mario Vargas Llosa o interesse em retratar personagens históricas. O escritor já romanceou a vida do brasileiro Antônio Conselheiro e a do ditador dominicano Trujillo Molina. Talvez menos conhecido por aqui, o irlandês Roger Casement é mais um belo exemplar desta galeria de Llosa que sai da vida para entrar no tumulto criativo de sua pena. E O sonho do celta (El sueño del celta; 2011) é um dos romances mais notavelmente escritos por este grande artista da palavra.
É impressionante a forma como Llosa articula as diversas vozes de ação em torno de Roger, para centrar nesta figura escorregadia mas turbulenta as inquietações de seu drama histórico. Igualmente impressiona o modo como o romancista Llosa utiliza as tintas da realidade para compor uma personagem extraordinária, fazendo emergir do texto a gravidade da consciência de Roger sobre sua própria trajetória: inicialmente um elemento do próprio processo de opressão do governo britânico (ele é um capitão do exército), suas transformações subversivas o jogam para um inimigo do país, simbolizado em sua prisão e enforcamento finais. Estas alterações subversivas se exacerbam, aos olhos do moralismo britânico, nas próprias preferências homossexuais de Roger, atividades que a pena de Llosa acompanha, em algumas descrições, com plena sedução. No epílogo Llosa recaptura com realismo o modo como o governo, pelas mãos do médico oficial, invadiu a vida privada do protagonista, explorando sua intimidade ali entre o ânus e o começo do intestino, para simplesmente poder concluir que “as práticas a que o executante aparentemente era inclinado”. Enfim, se queria demonstrar, para a retrógrada sociedade do início do século XX, que a criatura não era boa coisa e merecia seu fim, o esquecimento. Llosa, um espírito literário extremamente crítico, se esforça por desmontar este processo.
Fruto de pesquisa e de invenção própria, na linha do que já fazia o alemão Thomas Mann em muitos romances e na qual hoje muitos romancistas históricos se inserem, O sonho do celta merece ser qualificado como um monumento da literatura de hoje.
O SONHO DO CELTA. De Mario Vargas Llosa. Rio, Objetiva, 2011. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Original: El sueño del celta.
“Era pouco depois de meio-dia e Roger, dizendo que em vez do almoço preferia descansar, se retirou para o quarto. Tinham preparado um dormitório simples para ele, com tecidos indígenas de desenhos geométricos pendurados nas paredes e uma pequena varanda de onde se via um pedaço de rio. O barulho da rua diminuía aqui. Foi se deitar sem tirar a jaqueta sem as botas e adormeceu na mesma hora. Foi invadido por uma sensação de paz que não tivera ao longo do mês e meio de viagem.”
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br