A Irreverencia das Meninas

Das tripas coracao, revisto tantos anos depois e nao tao citado quanto Mar de rosas (1977), parece ser a psican?lise profunda do cinema de Ana Carolina

06/07/2020 14:04 Por Eron Duarte Fagundes
A Irreverencia das Meninas

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Das tripas coração (1982) é feito dum mergulho no subterrâneo do delírio cinematográfico. Ainda que faça transbordar um realismo cru: desbocado e debochado. A algazarra das meninas, que descontrola a própria estrutura da imagem da narrativa, está cheia dos movimentos de corpos adolescentes provocativos, mas também se preenche duma verbalização que recria aspectos chulos do vocabulário de quem descobre o desejo e quer libertar-se. Num destes quadros em que as garotas se cruzam, expelindo seus hormônios, o palavrão ligado ao sexo corre solto; uma destas frases ecoa: “Puta que o pariu xoxota!” Ana Carolina Teixeira Soares, a realizadora do filme, não poupa o sarcasmo crítico; quando o filme apareceu em nossos cinemas, na década de 80 do século passado, houve quem se sentisse incomodado com o vomitório furioso de Ana Carolina; nosso moralismo mediano sempre esteve por aí. As cenas de sexo ou nudez são poucas em Das tripas coração; o mais agressivo está naquilo que  as personagens falam; Neville d’Almeida, num filme como A dama do lotação (1978), tentava estas aproximações desmistificadoras para com o comportamento de classe média da sociedade brasileira; mas Ana Carolina vai muito mais longe, formal e tematicamente. Das tripas coração desorganiza o coração da linguagem cinematográfica: lá pelas tantas, a personagem de Antônio Fagundes, o interventor, lança a questão, numa oração repentina: “Quem alcança a ordem da minha desordem?” Das tripas coração, revisto tantos anos depois e não tão citado quanto Mar de rosas (1977), parece ser a psicanálise profunda do cinema de Ana Carolina.

Ambientado num internato de meninas, Das tripas coração começa com a  chegada do interventor que deverá fechar o colégio um pouco por suas imoralidades, um pouco por sua desorganização. Começando com algum realismo, o filme logo envereda pelo delírio de filmar: um surrealismo muito particular de Ana Carolina. Navegando por frases de estereotipado controle escolar (“Não te faça de mais estúpida do que a natureza já te fez” adverte a diretora a uma aluna) e misturando-as com brincadeiras vulgares e maliciosas (as garotas brincam improvisadamente com falsas e falhadas rimas: piroca e piracicaba, palpite e palmito, aliterações aleatórias pois). Mordaz, a cineasta se vale da simbologia cristã (um padre, imagens de Cristo na cruz) para transitar por entre a ambiguidade de nosso comportamento moral e sexual. Em determinado instante a estátua de Cristo na cruz, diante da sarabanda erótica no colégio, se revela como um indivíduo real mesmo, se mexe e fala: “Deixa eu lamber”. Ana Carolina vai destruindo todas as hipocrisias, inclusive a hipocrisia estética: numa cena, uma mulher toca fervorosamente ao piano, e a vocalista, simulando uma soprano, só faz repetir: “Miao... maio... maio”, interminavelmente, como uma periódica matemática. Nunca a zombaria da diretora foi tão longe nem tão consequente: uma paródia homérica. Lá pelas tantas, aparece um característico ator brasileiro, Othon Bastos, na pele dum mestre, e a certa altura cai (sexualmente) sobre o corpo da atriz Cristina Pereira, que interpreta uma  servente do colégio, e na hora da busca do orgasmo exclama: “Faxineira, criada, doméstica, mucama”, algo como o sexo de classes. Depois, quando a mulher se vai retirando após o ato, e já não está ela no quadro, a voz de Othon inquire: “Você já leu Engels?” Então, é de se perguntar, com Ana Carolina e Antônio Fagundes: “Quem alcança a ordem da minha desordem?” Numa sequência de missa a câmara alterna planos médios das orações do sacerdote  com travellings próximos das garotas que estão nos bancos para o rito litúrgico; destes contrastes do cristianismo o filme extrai muito de sua força e engenho.

No fim do filme, o interventor que no começo chegava ao local, acorda debruçado sobre a mesa e entram as professoras do colégio para a deliberação sobre o fechamento daquela desordem escolar. Num primeiro momento, seria como se os desvarios anteriormente filmados, tendo as pessoas de internato como criaturas, não passavam dum sonho do interventor, num cochilo antes da reunião. Mas a lógica da dinâmica da linguagem para um filme como Das tripas coração é outra: o real e o delírio têm uma cara só. Uma só imagem.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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