O Cinema Gaucho e o Racismo do Sul

Somos os sulistas muito racistas: isto determina um comportamento, que se traveste de ingenuidade muitas vezes

03/08/2020 14:20 Por Eron Duarte Fagundes
O Cinema Gaucho e o Racismo do Sul

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I – UM FILME

 

O caso se deu em 1987. Em Porto Alegre. Sabemos: a democracia racial brasileira é falácia; o Brasil é racista: no sul o racismo tem alguns graus a mais. Somos os sulistas muito racistas: isto determina um comportamento, que se traveste de ingenuidade muitas vezes, dá-se que esta ingenuidade perversa é protegida pela capa branca da sociedade sul-riograndense, os privilégios que temos como uma classe média branca é que vingam, acabamos naturalizando esses privilégios.

Em 1987 um jovem negro foi executado pela Brigada Militar gaúcha ao ser confundido com um dos assaltantes que atacaram um supermercado na zona leste da cidade. Este jovem, Júlio César de Melo Pinto, saíra do trabalho e, por curiosidade, engalfinhara-se no tumulto de curiosos que assistiam ao assalto; Júlio sofria de epilepsia e teve um ataque no meio das pessoas e foi algemado e jogado para dentro dum carro da Brigada como se fora um dos criminosos. Um repórter da época, Ronaldo Bernardi, o fotografou quando o punham na viatura: estava vivo, somente com um corte na boca provocado pela queda durante o ataque epiléptico. Este mesmo repórter voltou a fotografá-lo no Instituto Médico Legal: morto. As fotografias ilustraram as manchetes do jornal do dia seguinte, pondo em cena um dos casos mais rumorosos daqueles dias: o assassinato dum jovem negro por agentes da Brigada Militar, uma revelação do lado duplamente criminoso do Estado brasileiro, matar alguém (homicídio institucionalizado) e matar alguém por ser negro (racismo que institucionaliza a estrutura racista da sociedade). Diziam que a ordem de matar partira de cima: nunca foi permitido isto nos caminhos do inquérito, os mandantes continuam soltos e agindo por aí. É no rastro deste crime racial que a diretora gaúcha Camila de Moraes se lança em seu filme O caso do homem errado (2017). O mosaico de impressões despejados pelas personagens do documentário permite a Camila lançar um olhar a um tempo que a artista não viveu e que no entanto continua a encaminhar as curvas da sociedade brasileira: em 1987 a ditadura militar aparentemente já tinha apodrecido, mas os vermes de seu pulmão ainda roíam as entranhas sociais, especialmente em suas estruturas repressivas, a polícia civil, o exército, as corporações militares, não se mexe facilmente em hábitos montados ao longo de anos de autoritarismo, então os métodos de higienização social permaneciam nas sombras.

Trata-se de um documentário de entrevistas, o de Camila. A cineasta não opta por outras pesquisas. Interessa-lhe ouvir as pessoas que estavam no drama evocado: o repórter que deu o flagrante do crime, os amigos, parentes e conhecidos da vítima, aqueles que por compromissos com instituições humanitárias se engajaram numa causa. O filme, sabe-se, abertamente milita ao lado destas pessoas. Ao contrário do que poderia parecer, esta opção não se converte num limitador: é uma concentração de energia fílmica. Uma das figuras centrais do drama, numa morte como a de Júlio, não deixaria de ser a mãe. No filme de Camila esta mãe não está entre os entrevistados: não percebi nenhuma informação sobre seu paradeiro atual; talvez já tenha morrido. Todavia, ela é uma ausência presente com grande força. Uma das cenas densas do documentário ocorre em torno desta mãe. Ela não aparece diante da câmara de Camila: ela é referida. Um depoente alude ao encontro desta mãe com o governador da época, Pedro Simon, que por aqueles dias também perdera um filho num acidente, e o que toca na evocação do entrevistado é lembrar a forma como a mãe de Júlio liga seu caso ao do governador, mesmo com toda a ausência de semelhanças. Um depoente fala da sensibilização do governador ao ouvir a todos que buscavam a verdade em torno de Júlio, mas alerta: “a sensibilização deles é superficial.” Alargando o conceito, pode-se dizer que nenhuma sensibilidade branca pode abarcar a sensibilidade deste documentário, dirigido por uma jovem negra, interpretado por maioria negra. Camila entrevista muitas vezes nas ruas: é uma outra Porto Alegre a que deparamos na lente de Camila. Boa parte das entrevistas se dá, sim, em estúdio-sala, neutraliza o cenário. Há uma sequência em que é entrevistada uma mãe negra que teme as  saídas de seu filho para o trabalho por recear que ele não volte, que lhe aconteça o mesmo que se deu com Júlio César; a câmara está inicialmente em seu olhar de umidade melancólica, um momento depois desce para os lábios que dizem coisas, mais adiante enquadra mais as narinas; o olhar que se deita para o absurdo dos fatos, as formas de falar e um processo de respirar: tudo está numa sequência como esta, olho, boca e narinas. Camila usa amiúde uma dicotomia entre imagens e sons ao introduzir os entrevistados: vemos na imagem a pessoa que vai começar a falar, mas a voz da apresentação dita por esta pessoa vem de uma outra imagem que só depois aparecerá na tela para dar prosseguimento à fala, a primeira imagem da criatura é uma imagem sem fala diegética mas a fala já aparece em off (extradiegeticamente).

O caso do homem errado questiona seu próprio título. Haverá homem errado num assassinato? Especificamente: no assassinato dum jovem negro? O espectador questiona: por que Camila manteve então esse título duvidoso? É certo que o caso passou à história como o do homem errado, o homem errado seria o trabalhador Júlio César mimetizado num bandido Júlio César, que seria o homem certo para ser morto, este bandido que não existia; o documentário, diferentemente do que aparece em seu título, duvida que haja o homem certo para ser morto.

 

II — CINEMA, RACISMO E SOCIEDADE

Em 30 de junho de 2020, uma terça-feira, a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul fez um debate em seu canal na internet em torno do tema do racismo visto pelo cinema. Participaram quatro jornalistas. Dois brancos: Fatimarlei Lunardelli, jornalista e ensaísta; e Daniel Feix, presidente da ACCIRS e crítico de cinema do jornal Zero Hora. E dois negros: Daniel Rodrigues, crítico de cinema, radialista; e Chico Izidro, jornalista do jornal Correio do Povo. O programa fora concebido à luz do episódio do assassinato de um negro por um policial branco nos Estados Unidos, um fato midiático de dimensões internacionais.

Izidro usou de duas expressões significativas para expressar suas assombrações diante do racismo de um clássico do cinema como O nascimento de uma nação (1915), de D. W. Griffith: “pelas barbas do profeta” (que teve um ar jocoso) e “é preciso ter estômago” (algo para provocar a consciência branca que logra ver o filme racionalmente). A voz de Izidro aí tem a autenticidade de um negro vendo o filme de Griffith: qualquer voz branca que se mescle com a dele será capciosa.

As vozes brancas do debate da ACCIRS se permearam de conflito com as vozes negras. Um conflito talvez de sustentação e imposição: indelével. Vendo e revendo o vídeo do debate, um conflito se estabeleceu quase imperceptível. Daniel Feix sustentou que o apagamento não existe, precisamos compreender o passado e seus erros, falava especificamente da questão de impedir exibições por qualquer meio de ...E o vento levou (1939), de Victor Fleming, por seus tópicos racistas. Daniel Rodrigues, o aparte negro, observou que o apagamento pode ser difícil, mas com força se apagam certos registros, embora, em sua posição de crítico, Rodrigues sustente a importância cinematográfica de um filme como O nascimento de uma nação. Fatimarlei faz a conclusão dos debates recomendando o filme O caso do homem errado, o filme gaúcho que trata da violência policial contra um negro na década de 80, em Porto Alegre, em moldes semelhantes àqueles das ações racistas da polícia norte-americana e que no fundo foi o mote das questões levantadas pelos críticos da ACCIRS. Parece uma premonição de fatos para o que viria poucos  dias depois aqui mesmo no Rio Grande do Sul.

 

III — OUTRA DEBATE, OUTRA ASSOCIAÇÃO, INESPERADO RETORNO DO RACISMO

(Meditações sobre o racismo no cinema. O cinema como espelho da sociedade, espelho um pouco no sentido de Stendhal, um pouco no sentido de Umberto Eco. O Rio Grande do Sul tem um povo extremamente racista e preconceituoso. A serra gaúcha, onde nasci e me criei ali vivendo até meus 17 anos, é ainda mais racista que o restante do estado. Exemplos ouvidos e vistos abundam na memória).

Em 03 de julho de 2020, a sexta-feira da mesma semana do debate que comentei no trecho anterior, a Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do RS promove um debate em seu canal sobre o filme gaúcho Inverno (1983), de Carlos Gerbase. Luciana Tomasi, produtora cinematográfica gaúcha, que  produziu o filme de Gerbase e no qual também teve participação como atriz, e que foi uma obra cinematográfica representativa duma geração de cinéfilos a que este  comentarista pertence, então Luciana foi questionada por Giordano Gio, coordenador dos debates, sobre a presença de influências europeias e especialmente francesas no filme. E enveredou para caminhos à primeira vista inesperados, no entanto bastante lógicos e contextuais. Afirmou Luciana que Inverno era um filme em que se envolviam um Schünemann, uma Adami, uma Tomasi, um Gerbase, e que ela própria, uma Tomasi, tinha sangue francês, e que não poderiam fazer um filme de senzala, não seria o melhor deles. Davi de Oliveira Pinheiro, cineasta gaúcho, disse, comentando o vídeo, que Luciana fez sua composição racista tentando ser antirracista: lucidez de Davi, pois ali o conceito de lugar de fala está na fala equivocada. Entre os componentes da mesa online, além de Gerbase (diretor), de Luciane Adami (intérprete central), de Giba Assis Brasil (montador), e dos citados Luciana e Gio, uma participante à parte, o contraponto duma geração mais nova, a roteirista, cineasta e produtora de cinema Mariani Ferreira, negra. O mal-estar foi inevitável. Para todos ali, especialmente para Mariani, e creio mesmo para quem assistiu ao vídeo. Mariani tardou um pouco a voltar às boas com o debate; sua primeira manifestação após a declaração torta de Luciana trouxe uma voz naturalmente nada à vontade e fez considerações do que a incomodava no cinema gaúcho, o recorte que este cinema (certamente se referia ao movimento superoitista dos anos 80, em que Inverno se insere) trazia para o espectador restringia a realidade porto-alegrense a uma identidade branca  na qual Mariani não se via. Lembrando isto, Mariani, roteirista, produtora, diretora, pôs na parede nosso racismo, um racismo estadual e de época que viveu nos interstícios de um filme como Inverno na década de 80, um filme que nos marcara, em sua precariedade e limitação e virtudes de narrar, em seu tempo. Quem viu todo o debate por vídeo sobre o filme de Gerbase sabe que os preconceitos exibidos por Luciana não se concentraram somente neste trecho constrangedor ou no uso da palavra senzala; sabe também que havia nas entrelinhas outros preconceitos extrarraciais; compreende este trecho como um instante silenciosamente cruel do corporativismo branco que busca ocultar as ideias problemáticas duma Tomasi e deixa solta a mágoa duma Ferreira: é bastante clara a linguagem audiovisual do debate online numa espécie de anteparo racista, proteger os brancos e deixar a jovem negra que dê seu recado como puder. Não deixa de ser curioso como uma geração que na juventude confrontou uma sociedade mofada que já não servia aos indivíduos, se revela, no tópico do racismo e em outros pequenos tópicos domésticos, arcaica como a sociedade que um dia se combateu. “Eu sou uma Tomasi”, e isto parece explicar tudo. Talvez no fundo, bem no fundo nos tenhamos enganado sobre nós mesmos, nossa geração, nossas verdades tortas e os preconceitos que nos orientaram naqueles anos e por anos.

Mariani Ferreira foi o brilho agudo do debate online sobre Inverno. Um filme que, aparentemente, nada teria com o racismo; mas surgiu das sombras para revelar rastros racistas: do cinema e da sociedade gaúchos, pois os espelhos só refletem. A presença de Mariani na linha de frente dum debate sério sobre cinema fez acordar essas sombras do passado; bem observou o crítico Daniel Rodrigues (que poucos dias antes estivera no debate da ACCIRS sobre racismo e cinema) em seu artigo descortinador O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo, “verbalizadas pela produtora Luciana Tomasi e indiretamente consentidas por outros participantes durante a reunião virtual, as falas foram motivadas, sem dúvida, pela presença instigadora de Mariani Ferreira.”

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)  

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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