Escravidao e Racismo: Rupturas Historicas

Djamila nao da treguas, entra rachando no seio de argumentos que nasceram de suas proprias experiencias

27/06/2022 13:25 Por Eron Duarte Fagundes
Escravidao e Racismo: Rupturas Historicas

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Djamila Ribeiro insere seu Pequeno manual antirracista (2019) na luta social e histórica pela visibilidade das pessoas negras. É uma literatura de combate: a palavra é a pólvora da escritora e pensadora. A articulação do texto de Djamila não desvincula nunca as letras da vida: de sua própria vida. É o caso em que o pensamento se converte naturalmente em excertos autobiográficos: sem abdicar do rigor e da precisão dos raciocínios que têm sua natureza filosófica, histórica, sociológica.

Djamila é bastante clara em delimitar as diferenças entre as vivências sociais dum indivíduo branco e as que são experimentadas por indivíduos negros nas sociedades de racismo estrutural. “Desde cedo, pessoas negras são levadas a refletir sobre sua condição racial”, anota a autora na abertura de um capítulo de seu livro. O toque autobiográfico para iluminar a tese de Djamila é inarredável: “O início da vida escolar foi para mim o divisor de águas: por volta dos seis anos entendi que ser negra era um problema para a sociedade.” Diz ainda: “Até então, no convívio familiar, com meus pais e irmãos, eu não era questionada dessa forma, me sentia amada e não via nenhum problema comigo: tudo era ‘normal’.” A agudez de temperamento filosófico, ético e até estético de Djamila tem incomodado a muitos nestes limites do racismo que veio pelos séculos desde a escravização de populações negras africanas cujas rupturas históricas foram silenciadas por estas mesmas vozes das sombras (e que estão em todos nós) que se esforçam por calar alguém como Djamila: engolem-na pela força da argumentação mas se incomodam facilmente após frases-ideia da pensadora negra.

Djamila não dá tréguas, entra rachando no seio de argumentos que nasceram de suas próprias experiências. “O mundo apresentado na escola era o dos brancos, no qual as culturas europeias eram vistas como superiores, o ideal a ser seguido. Eu reparava que minhas colegas brancas não precisavam pensar o lugar social da branquitude, pois eram vistas como normais: a errada era eu.”

Toni Morrison, a grande romancista negra norte-americana, detecta na autobiografia a origem de seu primeiro romance O olho mais azul (1970). No posfácio de uma reedição nos anos 90, Morrison escreve sua evocação, também escolar, como a de Djamila: “Tínhamos acabado de entrar na escola primária. Ela disse que queria ter olhos azuis. Olhei-a, imaginei-a com eles e senti uma repulsa violenta pela aparência que visualizei caso o desejo fosse atendido. O pesar em sua voz parecia pedir comiseração e fingi comiseração, mas perplexa com a profanação que ela propunha, fiquei furioso com ela.” Diz mais Morrison: “Vinte anos depois eu continuava me perguntando como é que se aprende isso. Quem disse a ela? Quem a fez sentir que era melhor ser uma aberração do que ser o que ela era? Quem a tinha olhado e achado deficiente, um peso tão pequeno na escala da beleza?”

Luiz Mauricio Azevedo, um dos mais notáveis ensaístas, em seu livro Raça e estética: ensaios sobre a literatura negra (2021), no capítulo “A pedagogia invisível da morte”, também parte duma lembrança de vida para expor sua tese; esta lembrança, como as lembranças de Djamila e de Morrison, também tem o mesmo cenário: a escola. É ali que aprendemos: talvez mais na convivência com mestres e colegas que nas matérias dadas. Escreve Luiz Mauricio: “Eu queria ser Senna porque Senna ganhava. Era assim que se escolhia no meu tempo: a gente queria ser quem vencia. Estávamos em 1988. Talvez por isso tenha sido normal para a professora me dizer, já de saída da escola, já com pressa para o almoço: ‘E tu, hein? Piloto de Fórmula 1... pretinho desse jeito? Só se for o Piquet depois do incêndio’. E gargalhou. E os colegas gargalharam. E eu também gargalhei. Na década de 1980, todos os lugares desse país eram prisões mentais.”

Indivíduos de pena admirável como a americana Morrison e o brasileiro Luiz Mauricio podem ser lidos agora, à luz de Pequeno manual antirracista, como personagens do ensaio de Djamila, ela própria uma personagem de seu próprio texto. Djamila nos assopra: “perceba o racismo internalizado em você”. Aconselha-nos: “nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo ‘mas eu não sou racista”. Lembra que devemos apoiar “políticas educacionais afirmativas”. Exorta-nos a transformar nosso “ambiente de trabalho”. Propõe: “leia autores negros”, uma legião de criadores que é vítima do epistemicídio, um dos resultados do racismo estrutural.

Como mulher e negra, a escritora e pensadora Djamila anota: “As mulheres negras são ultrassexualizadas, desde o período colonial.” Alinhando ideias que se valem de ditos de outros autores, Djamila desmistifica uma falsidade no exame das relações afetivas que tentam reler o racismo na sociedade a partir de estereótipos exteriorizados: “A poeta e escritora Elisa Lucinda tem uma frase forte, mas muito pertinente: ‘Deixar de ser racista não é comer uma mulata’. A autora chama a atenção para o fato de que se relacionar com uma pessoa negra não significa ter uma consciência antirracista. Primeiro, porque é necessário entender como essa relação se dá. Se ela segue signos racistas, como a ideia de que mulheres negras são ‘quentes’ e ‘naturalmente sensuais’, ou ainda se a pessoa só procura pessoas negras para relações casuais, e não para um compromisso duradouro, a relação é pautada pelo racismo.”

A despeito de seu título e de suas aparências estruturais, Pequeno manual antirracista não simplifica as questões como um manual didático para iniciantes. Adota teias de extraordinária complexidade humana. E atinge em muitos momentos os centros da questão. Ao fazer a crítica de Casa-grande &Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e apontar a fetichização erótica do corpo negro na visão de Freyre, Djamila conclui um dos dados históricos de nossas relações raciais originais: “Nesse contexto, não há como negar que elas eram estupradas pelos senhores de engenho.” A oração final do opúsculo de Djamila traduz seus desejos: “Este livro é uma pequena contribuição para estimular o autoconhecimento e a construção de práticas antirracistas.” Nem pequena, nem somente isto: é transformador, gera no leitor uma transformação íntima. “O racismo conhece o potencial transformador da potente voz de grupos historicamente silenciados.” Ali, no átomo desta circulação de ideias, está quem lê, transformado antes de ser transformador.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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