Na Fronteira
O Inverno e Depois (2016) é o romance mais bem acabado do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil
O inverno e depois (2016) é o romance mais bem acabado do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. É aquela narrativa em que, utilizando seus habituais rigor de linguagem e meios de narrar, o autor atinge uma fluência emocional que é própria da grande ficção; aposta-se que isto vem da dinâmica de suas metáforas e símbolos, é um pouco como se a gaiola literária anterior abrisse agora uma porta para os voos das aves, que são as palavras. Voo mais ou menos controlado, para não desandar, mas onde o controle acaba apaixonando o leitor pelos meandros de sua criativa estrutura de contenção.
Em muitos de seus romances anteriores Assis Brasil partiu de criaturas históricas para dar chão a suas narrativas. Não se tratava de romances históricos; havia a história como fundo, mas o ficcionista é que entrava em ação. Em Cães da província (1987) o mítico dramaturgo gaúcho Qorpo Santo percorria a recriação de Assis Brasil dum século XIX porto-alegrense subterrâneo; neste subterrâneo se podia topar a sinistra presença de José Ramos, o açougueiro de carne humana da rua do Arvoredo; há anos o historiador Décio Freitas revelou que o romancista lhe encomendara uma pesquisa histórica sobre Ramos, para usar no romance; então assim era o método: Assis Brasil valia-se da história e do historiador como quem toma um esqueleto, mas o esculpia depois à sua maneira. Também em Videiras de Cristal (1990) alguém que de fato existiu é protagonista, uma messiânica do interior gaúcho como objeto narrativo. Nestes dois livros vemos demências narradas com competência pelo rigor cerebral do verbo do escritor; no entanto, é este rigor que vai impedi-las de explodir como demências. Num livro agora do século XXI, Figura na sombra (2012), Assis Brasil põe em cena dois naturalistas europeus, um deles vai descobrir a América, a selva sul-americana, aquele que é a figura na sombra do outro, o mais famoso, o cientista mais narcisista opondo-se ao mais enclausurado ou ermitão. Toda esta literatura anterior, construída com precisão e com vários momentos de fascínio, parece agora um majestoso rascunho para o ápice —verbal, emocional— atingido por O inverno e depois. É, digamos assim, a aula magna de alguém que sabe contar uma história e emocionar-nos com esta história, ainda que esta história, como as velhas histórias de amor e memória, não tragam nada de novo debaixo do sol.
Basicamente, o encanto de símbolos de O inverno e depois nasce duma utilização —suave, pouco perceptível— do signo que há no vocábulo fronteira. Reflexionando sobre as relações entre o amor e a arte, O inverno e depois cruza inicialmente entre estas fronteiras, amor e arte. De como o protagonista Julius, um músico refinado, escrupuloso da perfeição, vê sua rigidez formal e estética transformar-se, com o distanciamento no tempo (a memória que revive), em algo mais solto, capaz de amar a imperfeição; o artista rígido é inapto para o amor, deve despir-se desta rigidez para entender os interstícios amorosos; neste aspecto o romance é quase uma autobiografia estética da trajetória de Assis Brasil até aqui, de como ele inseriu seu rigor de sempre na dinâmica emocional das personagens, neste momento com uma perfeição imperfeita tão imponderável. Fronteiras: é onde tudo se passa, e sem grosserias interioranas, sem bravatas gauchescas.
O centro simbólico do uso de fronteira como signo no romance se dá mesmo na cena final. Julius vai encontrar sua amada da juventude, que conheceu na Alemanha durante um curso musical, numa estância que fica entre o Brasil e o Uruguai. Desligando-se momentaneamente de seu casamento, Julius mergulha naquela fronteira, em sua própria fronteira com o passado, “o alçapão que se abre sem aviso”, ao rever Constanza, a mulher que amara tantos anos antes, “sob o olhar dela, todos os objetos de sua conhecida sala passavam a ter vida”, e o artista impávido está de novo apaixonado, pois “ela vem do outro lado da praça, apoiando-se sem muita necessidade na bengala”.
O gesto final da narrativa, o bilhete que Constanza mandou entregar a Julius, “me procure depois do concerto, na Praça, estarei livre”, deixa em aberto a re-possibilidade de um amor perdido no tempo, uma fronteira que tem de ser atravessada. Mas não é a única fronteira por atravessar, o tempo; existe, já referi, a fronteira entre as artes e os sentimentos, lograda por Assis Brasil; e a própria fronteira entre as artes, as relações entre a música e a literatura, obtidas com extrema felicidade em O inverno e depois. “Depois do sexo silencioso, urgente e bêbado, de um prazer repentino, quando ela se voltou para a parede e logo ressonava, ele não dormia.” “Descalço, com o poncho sobre os ombros, ele abre a janela para a manhã do pampa.” “Agora é apenas Dvorak. As notas correm por seu cérebro, pode vê-las.”
Constanza é uma marca indelével no coração de Julius. Ele não fará, no final, como fez Swann, no romance de Marcel Proust, pensando em Odette e exclamando dentro de si mesmo: “Dire que j’ai gâché des années de ma vie, que j’ai voulu mourir, que j’ai eu mon plus grand amour, pour une femme qui ne me plaisait pas, qui n’était pas mon genre.” A “femme entretenue”, que era Odette e cujo conceito em certo instante narrativo espantou a Swann, vai dar lugar em Constanza à mulher que se sustenta na memória afetiva: sombras fortes.
Se a cena do reencontro em suspenso no fim do livro é a mais agudamente simbólica da narrativa, por dar-se na fronteira, a mais bela das cenas, que permite ao leitor organizar seus sentimentos para com as personagens e o próprio livro, é uma que se dá na Alemanha, quando Julius vê uma apresentação de sua amada. Eis o trecho: “O segundo movimento do concerto foi iniciado com uma dor insuportável, amorosa e bela. Eram a paz e o repouso. Julius foi acompanhando a execução, e quando chegou próximo da passagem imperfeita, a mesma que ele escutara naquela tarde fria da Ponte, ele baixou a cabeça e, como revivendo aquela tarde, escutou a sucessão de fusas que descendia para o Ré grave e imperfeito. Suspirou de prazer e angústia. Era Constanza.” Parece emanar do texto: a verdadeira arte como o verdadeiro amor são prazerosos e angustiantes e trazem em si um semelhante grau de insuportabilidade e beleza, por sua dor.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br