O inglês John Le Carré foi o romancista da Guerra Fria, aquela guerra surda e ideológica entre duas visões de mundo que tinham à frente no Oriente a União Soviética e no Ocidente os Estados Unidos da América. Le Carré sabia do que falava: foi agente secreto britânico e conheceu de dentro as corporações que faziam este jogo internacional. Ao escrever, transpôs para a literatura estas suas experiências; quando a Guerra Fria terminou, esfriando mesmo, com a queda do muro de Berlim e o desmonte da União Soviética, repartindo suas nações étnicas, Le Carré teve de alterar suas visões temáticas, mas sua internacionalização narrativa, claramente influenciada por um certo cinema de suspense (com o diretor inglês Alfred Hitchcock na linha de frente), permaneceu determinando seu estilo de contar suas histórias.

O espião que sabia demais (Tinker, tailor, soldier, spy; 1974) é um dos romances considerados básicos de sua aventura literária. Com grande habilidade, Le Carré põe nas páginas personagens que, apesar do constante movimento de suas ações e o desejo mesmo de dar ao movimento mais fundamento que a ação reflexiva, vão adquirindo complexas densidades amiúde exacerbadas por descrições de inesperada precisão interiorizada. “Desde o início da reunião, Smiley assumira, de modo geral, um ar de inescrutabilidade budista que nem a história de Tarr nem as raras intervenções de Lacon ou de Guillam poderiam fazê-lo abandonar.” George Smiley é a personagem central, um obcecado agente secreto inglês interessado em investigar, a partir das revelações duma agente russa desaparecida na fumaça narrativa, as ações dum agente infiltrado entre os ingleses que fazia também o jogo dos russos: o clássico agente duplo. “Depois disso a noite teve seu próprio desvario. Os acontecimentos se sucederam depressa demais para que ele, sozinho, pudesse ligá-los.” Se as criaturas do romance se perdem, ou perdem a noção do espaço em que estão, não é o que acontece com o narrador de Le Carré: mestre de sua construção, o autor inglês dispõe seus jogos de maneira intensa, valendo-se dum senso literário a que a complicada internacionalização da trama vem adicionar um outro lado do encanto estético.

O cineasta sueco Tomas Alfredson filmou em 2011 O espião que sabia demais. Seu filme tem beleza e um certo tipo de brilho; mas falta-lhe consistência de narrar, agudeza de propósitos. O elenco é variado e interessante, desde o veteraníssimo John Hurt até faces atuais cativantes como Gary Oldman, Colin Furth e Toby Jones. Mas muita coisa se perde nesta sua transposição. No roteiro de Bridget O’Connor e Peter Straugham, há uma última frase que não aparece no filme; George senta-se à mesa para a conferência do Circus e lança: “Vamos começar?” No filme, mostra-se a trajetória de George para a sala de reuniões, subindo escadas, chegando à sala, sentando-se à mesa e olha para a câmara, sem dizer nada, então começam a descer os créditos finais. O filme, de certa maneira, promete começar mesmo no instante em que se conclui: mas faltou porem a frase anotada no roteiro. Pensando no livro, tão alterado, deparamos com o filme como algo incompleto: belo e um pouco fútil.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)