Um dos ensaios de Sob o signo de Saturno (Under the sign of Saturn; 1980), justamente o que divide o título com o próprio volume, trata do pensador alemão Walter Benjamin. A autora de Sob o signo de Saturno é a ensaísta americana Susan Sontag; ao escrever sobre alguns luminares culturais do século XX, naturalmente Sontag fala muito de si mesma, das próprias iluminações de seu pensamento: ao tergiversar sobre os outros, Susan, como todos nós, e de maneira mais aguda que a maioria, tenta esclarecer a si mesma e a suas ações. O ensaio em torno de Benjamin, Susan o compôs em 1979. Onze anos antes, outra ilustre ensaísta do século passado, a alemã Hanna Arendt, publicava o fundamental Homens em tempos sombrios (1968); e ali havia também um ensaio nas malhas de Benjamin, Walter Benjamin: 1892-1940. Como Susan, Arendt buscava nos outros algo para entender-se; talvez, sobre Benjamin, Hanna, como alemã, estivesse mais próxima deste entendimento. Então, no texto em que ela se esforça por captar Walter, Susan opera um pouco por símbolos. “Na maioria das fotos que o retratam, ele aparece com o olhar voltado para o chão, o rosto apoiado à mão direita.” Hanna, ao contrário, tem aquela desabusada objetividade germânica, estranha, impiedosa, meditativa: “O que guia esse pensar é a convicção de que, embora o vivo esteja sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo um processo de cristalização.”

Em Susan, em Sob o signo de Saturno, no conjunto de brilhos dos ensaios, talvez o mais profundo e revelador seja Hitler de Syberberg, publicado em 1980, e que toma por base o filme Hitler, um filme da Alemanha (1977), do diretor alemão Hans-Jürgen Syberberg, e serve de iluminação de todo o processo criativo de Syberberg, sua notável ambiguidade estético-intelectual, e também das próprias características do pensar de Sontag, uma das fontes mais complexas da arte do raciocínio no século XX. Assombrada, Sontag concede no fim de sua linha crítica: "O filme tenta ser tudo. A ambição inaudita de Syberberg no filme Hitler, um filme da Alemanha, encontra-se em outra escala em relação a tudo o que já vimos no cinema.” Os textos ensaísticos de Susan são totalizantes como o filme que ela analisa: detendo-se num caso (Hitler e o nazismo, o cinema e a sociedade estética como um todo em Sontag) para chegar a coisas estimulantes para o pensamento. Como Syberberg, Sontag em determinado instante é desmesurada: “Após assistir a Hitler, um filme da Alemanha, damo-nos conta de que existe o filme de Sybergberg — e depois todos os outros que admiramos.” Há um trecho no ensaio em que Sontag evoca Godard, “a difícil, poética, áspera verborragia dos últimos filmes de Godard” (últimos filmes de então: o ensaio foi escrito no fim dos anos 70), e contrapõe “as divagações das personagens de Syberberg (Heller e Baer) estão repletas de uma calma segurança” ou “uma suprema confiança na linguagem, no discurso, na própria eloquência”. Nestas espécies de parábolas estéticas, ou filosofia da arte, Susan Sontag tateia seu grande caminho, que, no ensaio de abertura, Sobre Paul Goodman, começa, não poderia deixar de ser, “estou escrevendo num pequeno quarto em Paris, sentada numa cadeira de vime que dá para o jardim; atrás de mim há uma cama e uma mesa de cabeceira; no chão e debaixo da mesa, manuscritos, cadernos e dois ou três livros.”

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)