Sontag: O Mundo em Reflexao

Devota de diretores como os franceses Robert Bresson e Jean-Luc Godard, Susan Sontag tambem eh capaz de iluminar as ideias que o leitor carrega para dentro de seu livro

18/05/2021 02:23 Por Eron Duarte Fagundes
Sontag: O Mundo em Reflexao

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A ensaísta americana Susan Sontag é uma destas mentes do século XX que iluminam as possibilidades de reflexão de quem a lê. Com um pé nos Estados Unidos e uma cabeça muitas vezes na Europa, entre Nova Iorque e Paris, onde viveu e conviveu com cérebros fundamentais de sua época, Sontag no fundo tem uma visão essencialmente americana da arte e do universo; definindo-se a certa altura como dotada de eurofilia, o que Susan traz do Velho Mundo é a depuração, o refinamento e agudez de ideias, no entanto tudo materializado por uma visão muito americana, sólida, objetiva, com os pés no chão.

Estes excertos de sentimentos de leitura (acima) me nascem das páginas de Contra a interpretação e outros ensaios (Against interpretation and other essays; 1966), um conjunto de ensaios escritos entre 1961 e 1965 e uma visão muito particular e profunda de eventos geralmente artísticos, geralmente cinematográficos ou literários, numa das décadas mais convulsas do século, os anos 60. O texto de abertura, “Contra a interpretação”, dando título ao volume, é um marco: reorienta a percepção sensorial da obra de arte, pós-racionalismo, sem todavia cair na esterilidade do formalismo radical. “A interpretação, baseada na teoria altamente duvidosa de que uma obra de arte é composta de elementos de conteúdo, violenta a arte. Converte a arte num artigo de uso, passível de inclusão em um esquema mental de categorias.” Ela conclui esta sua reflexão anti-interpretativa com uma frase extraordinária: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte.” Isto é: aproximar o pensamento crítico do status da obra de arte, igualar-se quase, mimetizar, edificar uma poética do ensaio.

Devota de diretores como os franceses Robert Bresson e Jean-Luc Godard, Susan também é capaz de iluminar as ideias que o leitor carrega para dentro de seu livro, ainda quando ela veja os pontos falhos de artistas consagrados como o cineasta francês Alain Resnais e o ficcionista inglês D.H. Lawrence. Ao debruçar-se sobre Muriel (1963), uma obra menos estimada do diretor Resnais, ela ataca de cara com uma oração surpreendente: “Muriel (1963) é, de longe, o longa-metragem mais difícil de Resnais.” Mais adiante explica: “Muriel é difícil porque tenta fazer o que ambos, Hiroshima e Marienbad, fizeram.” Qual o sentido de “difícil” para Sontag, diante do que se pode ver em Marienbad, pensando em Muriel? “Mas, como Marienbad, Muriel também tenta projetar um drama puramente abstrato —redobra o virtuosismo e a complexidade do filme.” Aos poucos o leitor descortina o que se oculta no adjetivo “difícil”, um uso próprio da ensaísta —no passo a passo de seu pensamento construído. “Resnais sabe tudo da beleza. Mas seus filmes carecem de tônus e vigor, falta-lhes um tratamento direto. São cautelosos, de certo modo sobrecarregados e sintéticos. Não vão até o fim da ideia ou da emoção que os inspiraram, e é isso que toda grande arte deve fazer.” Nestas considerações de 1963 Susan tinha diante de si um Resnais incipiente; ao leitor do século XXI cabe ver estas notas como  o esboço ou fragmento de uma filmografia, agora que Susan e Alain morreram, ambos, ensaios e filmes, encarados em sua completude.

D.H. Lawrence, romancista incontornavelmente fundamental da literatura do século XX, é objeto duma observação de passagem de Sontag em que ela busca atacar o moralismo da sociedade anglo-americana, no meio de considerações sobre um outro livro. “Um país onde a defesa de um livro sexualmente tão reacionário quanto O amante de Lady Chatterley é um assunto sério encontra-se claramente num estágio muito rudimentar de maturidade sexual.” É curioso, para o leitor, observar que a aguda mágica crítica de Susan se aproxima da prestidigitação de linguagem e cenas de Lawrence para a confrontar e, no entanto, amá-la às avessas, pelo coeficiente de descobertas que lhe proporciona.

Trinta anos depois, para reeditar seu livro já clássico, Susan aponta um posfácio que começa assim: “Não é um exercício saudável rever os escritos de trinta anos atrás ou mais. Minha energia de escritora me leva a olhar adiante.” No posfácio, apesar deste introito amedrontado, Susan revela o deslumbramento com que escreveu Contra a interpretação e outros ensaios: o deslumbramento estava naquele universo dos anos 60, seu engenho foi lograr transformar o mundo numa literatura maior.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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