A Hipnose Cinematografica

A comedia de Deus (1995) eh um filme da insistencia do olhar

09/03/2021 14:23 Por Eron Duarte Fagundes
A Hipnose Cinematografica

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A hipnose nasce da insistência dum olhar que cria uma imagem que passa do hipnotizador ao hipnotizado. O cinema insiste num olhar que aos poucos se transfere do realizador ao espectador. Mas boa parte da terapêutica cinematográfica se perde nos filmes comerciais. É preciso que exista um cineasta tão descompromissado quanto o português João César Monteiro para que se recoloque na ordem do dia o caráter “medicinal” do artista que cria imagens em movimento. É preciso que alguém lembre que o mecanismo do olhar é longo e insistente, antes de se tornar nestas coisas aparentemente objetivas e encadeadas de todo dia.

Pois A comédia de Deus (1995) é um filme da insistência do olhar. Daí o caráter hipnótico de seus enquadramentos. Monteiro exercita seu olhar cinematográfico numa estilização visual em que abundam longos planos fixos, montando uma lentidão narrativa que exaspera o outro olhar, o olhar dialético do observador. Seus planos fixos, porém, nada tem do despojamento daqueles usados pelo japonês Yasujiro Ozu. É verdade que a câmara por via de regra para diante das personagens. (Serão mesmo personagens? Não será melhor dizer criaturas? Não há em Monteiro uma dramaturgia propriamente, são peças soltas unidas pelo fio estilístico, nosso olhar vê o olhar da câmara que se derrama sobre fragmentos da vida, a liberdade de filmar é máxima, uma cena não se liga logicamente a outra para fazer uma história, desfaz-se a personagem psicológica da ficção clássica). A câmara para. O que se mexe está dentro do quadro. Uma figura entra no quadro, sai, vem outra, o cenário não muda, rola a conversação. No começo do filme o primeiro e mais elaborado longo plano fixo mostra a criatura interpretada pelo próprio diretor a uma mesa fazendo anotações escritas, uma mulher contracena, esta sai da imagem visível, torna a entrar, sai de novo, vem outra, ele dirige algumas palavras a uma e a outra conforme se encontram em cena. O interesse do espectador, graças ao inusitado do jogo visual (a permanência do plano imóvel, a sutil mobilidade dentro do quadro), desvia-se do conteúdo (as banalidades internas) para sua forma, para a maneira de olhar: uma insistência na duração da visão que acaba por hipnotizar. E os 165 minutos de projeção são geralmente compostos deste olhar fixo, abismado diante do patético do cotidiano. Nas poucas vezes em que Monteiro recorre a cortes mais amiudados (como na sequência do açougue, a câmara alterna as falas do açougueiro e do sorveteiro), estes cortes ainda obedecem a um rimo vagaroso e aqui e ali a câmara permanece fixa, valendo-se da voz do interlocutor no sistema-off.

A complexidade da estrutura fílmica de A comédia de Deus afasta Monteiro do possível despojamento de um plano fixo. A câmara está parada. O quadro tem um desenho expressivamente pictórico. A criatura se agita diante do olhar hipnotizador da câmara. Vemos o cineasta-intérprete sozinho em cena depois que a garota o deixou dirigindo-se ao banho de leite. A criatura mexe com as mãos. Segura o copo. Modifica o gesto. A interpretação de Monteiro abeira-se do inóspito. Não se sabe ao certo o que é previsto no roteiro, o que é improvisação de filmagem; há as duas coisas ao mesmo tempo no interior da cena. O que não é improvisação, o que é puro rigor são as composições formais, os achados plásticos, as inesperadas imagens que Monteiro vai semeando em sua sessão de hipnose. O plano fixo de Monteiro está cheio de sugestões: dotado de um quase-barroquismo.

É verdade que o cineasta se debruça sobre o cotidiano. Senão quando, a câmara leva a criatura do sorveteiro à cozinha em que as trabalhadoras dos sorvetes estão em sua azáfama; enquanto elas praticam seus gestos habituais, ele come, se não me engano uma banana, é um plano geral fixo da cozinha da sorveteria, as pessoas parecem peças de uma pintura, a estaticidade desconcerta o cinéfilo. Que é que há de tão diverso nesta sequência que poderia ser naturalista? É a maneira de olhar: insistindo na banalidade. E a duração do olhar: desliga a voltagem dramática fica ali, vagabundeando como quem não quer nada, só olhar e hipnotizar. O que intriga aí é uma certa gratuidade do comportamento da câmara; mas trata-se duma gratuidade que gira sobre si mesma para autorrefletir-se.

Sem perceber como a estética de A comédia de Deus se articula, não se aprenderá muita coisa acerca do cinema de João César Monteiro. Até seu humor português, que em localizadas sugestões eróticas mistura a vulgaridade com transcendência de Eros, nasce desta estética. Tudo aparentemente é banal e obra do acaso no roteiro do filme, que semelha anotações livres; porém a fita não é amadorística, em seu conjunto não é um alinhavado de situações desconexas, porque o desconexo de uma cena para outra é na verdade um elemento subterrâneo de linguagem que confere a A comédia de Deus uma lógica muito pessoal.

(Texto escrito em 1996, quando o filme de Monteiro foi exibido numa das salas da Casa de Cultura Mário Quintana, no centro de Porto Alegre.)

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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