As Complexidades Narrativas de Poesia Chinesa
Poesia Chinesa lan?a, livremente, questoes tematicas destes tempos dos tumultos homem-mulher
Poesia chinesa (2018), de André Caramuru Aubert, é um romance que se estrutura em várias linhas narrativas, ou de orientação estética. Começa como uma aula de um curso de poesia chinesa que um professor de meia-idade está dando no meio universitário; neste primeiro movimento a ação do romance é feita das palavras deste professor, personagem central, um discurso direto que capta aqui o monólogo de uma aula; o texto parece encaminhar um pouco Poesia chinesa para as vizinhanças de um romance-ensaio, algo que poderia evocar algumas experiências do alemão Thomas Mann, porém numa maneira bastante brasileira, mais direta e despojada. Os aspectos ensaísticos, revelando (arrisco, porque desconheço o processo) talvez um estudo, um conhecimento e uma pesquisa do objeto da aula introduz a narrativa, a poesia feita na China, estes aspectos de ensaio vão marcar, certo, toda a construção, a beleza e a profundidade duma obra como Poesia chinesa; o livro não se ausentará, mesmo em seus momentos mais terra-a-terra ou banais, deste efeito de raridade que é observar como um ocidental se aproxima dum universo tão diferente como uma poesia oriental, a poesia chinesa. Dada a aula, lá pelas tantas, a narrativa sai do discurso direto e vai construindo a história ora pela primeira pessoa objetiva do professor-personagem, ora pela livre associação dos elementos da consciência que as palavras fazem navegar nas páginas.
A poesia chinesa, que percorre o livro, é ela própria uma personagem da história (ou histórias) aqui contada. É a presença desta poesia, com seus mistérios e diferenças, que amplifica a perspectiva da personagem do professor, unindo as duas camadas de Poesia chinesa, o mundo das ideias e das artes e o universo especificamente humano das relações materiais, aí incluindo os amores, as desavenças triviais, as flutuações do sexo. Se num de seus livros anteriores, Cemitérios (2014), André expunha a poesia de seu verbo inspirando-se num certo refinamento nacional, em Poesia chinesa ele aprofunda ainda mais a depuração poética de sua literatura ao invadir as incógnitas de textos que lhe são distantes mas o puxam como um ímã, os poetas chineses de séculos variados.
Para quem, como este comentarista, transita entre o cinema e a literatura, a aventura estética de Poesia chinesa lembra o que fez o cineasta inglês Peter Greenaway em O livro de cabeceira (1996). Num determinado trecho do romance de André lemos uma nota ensaística: “Mas eu queria muito mostrar a vocês esse poema porque ele reforça um ponto importante que tenho tentado sustentar desde a primeira aula: a poesia chinesa tem um aspecto mais próximo com a pintura (e nesse aspecto a arte da caligrafia é um ponto de contato fundamental) do que com a prosa, ao contrário do que acontece conosco, no Ocidente, onde, desde as origens, e cada vez mais (com a possível mas raramente bem-sucedida exceção da poesia concreta), a poesia pertence ao mundo das palavras (em companhia do romance, do conto, do texto jornalístico, da petição do advogado, do menu do restaurante etc.), completamente apartada do universo das imagens (da pintura a óleo, da aquarela, da foto, do ícone, da mulher pelada no anúncio etc.)”. Não sei se o autor de Poesia chinesa viu o filme de Greenaway; e provavelmente esta informação não tenha importância nestas relações que são mais antropológicas que estéticas entre cinema e literatura do século XX para cá. No espaço crítico dado aos olhos do leitor que aqui escreve, ao ler a precisa e bela observação sobre a natureza plástica da poesia chinesa, estes olhos de leitor (e espectador de um filme) se voltam para a história e as imagens dO livro de cabeceira: os calígrafos japoneses que deitavam seus poemas em corpos humanos. Em André, como em Greenaway, o que se depara é a ousada aventura que um ocidental se impõe: chegar-se ao universo oriental, do qual jamais deterá a essência, para contagiar e transformar a própria arte ocidental em seus conceitos.
Poesia chinesa logra fazer estes contatos quase extraterrestres em alto estilo: em estilo de complexidade de seu narrar. Lado a lado com estes passos distantes do leitor brasileiro habitual, passos poéticos chineses, Poesia chinesa compõe algumas provocações inquietantes e atuais. Ligando-se por sexo e paixão a uma aluna, que inesperadamente o acusa de estupro, Poesia chinesa lança, livremente, questões temáticas destes tempos dos tumultos homem-mulher, especialmente no campo do cinema, com os casos do americano Woody Allen e do polonês Roman Polansky. O que é a liberdade do comportamento, o que é a ética sexual? O último suspiro de Poesia chinesa, a frase sem verbo, sem sujeito, só com o objeto: “Ah, Simone.” Significativo, emblemático notavelmente reticente. Provocação que também se insere numa dissertação sobre literatura nazista, e, matreiramente, no meio da argumentação, o achado de evocar o russo Vladimir Nabokov nas acusações que lhe fazem de pedofilia literária para descartar sua grande literatura.
Sim: Poesia chinesa vai à China. Mas há algo de mais transcendente nesta viagem do que uma viagem de curiosidade intelectual. Talvez, vamos arriscar de novo, investigar a conduta moral do homem do século XXI diante do fenômeno estético e suas relações com a vida.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br