Chile, Cinema e Poesia
Chile, Cinema e Poesia
Que vais fazer em Santiago do Chile? É a pergunta que me faz um novo cunhado (é o terceiro casamento, ou algo parecido, de minha irmã) num jantar qualquer perdido no último verão, na varanda duma casa de praia. Antes que eu responda, minha mulher se antecipa: “Beber vinho chileno”. Eu não saberia mesmo o que responder sobre os motivos duma viagem, ir a Caxias do Sul para logo adiante caminhar desta cidade serrana a Caravaggio, no interior de outra cidade serrana, Farroupilha, por cerca de quatro horas ininterruptas, ou ir a Paris para logo adiante andar dum hotel situado em Porte d’Italie em busca do bar La Closerie des Lilas, por uma hora e meia, ou seja, deslocar-me para continuar deslocando-me. Meus interesses gerais interessam a tão poucos que me constranjo de responder à pergunta do cunhado assim: “Vou a Santiago do Chile em busca dos vestígios de Pablo Neruda, o poeta.” Diante da resposta álacre de minha esposa, “beber vinho chileno”, meu cunhado, um homem de negócios, afiançou: “Ah, aí é um bom motivo”. Não creio que Neruda fosse facilmente incluído entre os bons motivos, não com a naturalidade do vinho chileno.
Quem engendrou a viagem foi Marilene, minha companheira, mas viagem é algo que nunca recuso. A possibilidade de alargar o Feriado do Trabalho gerando um feriadão convidava. Tínhamos de aproveitar. Pescar meu antigo imaginário geográfico, dos tempos de garoto-estudante na cidade gaúcha de Bento Gonçalves. A Cordilheira dos Andes e as águas do Pacífico que banham o Chile são sonhos de infância que me acompanham até este tempo em que os sonhos se concretizam.
Um menino de seis anos e seu olhar sonhador, no banco escolar
De uma certa maneira, perambular por breves dias pelo Chile foi perambular brevemente por algumas evocações da infância, como se estivesse num filme que ligasse as duas pontas da vida. Não sou dos brasileiros que não conhecem a neve ou só a conhecem em visitas turísticas. Criei-me no gelo. Em 1965 vi uma grande nevasca. Ao contemplar a neve nos 3000 metros de altitude dos Andes, retornei-me. Fui um moleque que se estirava debaixo de parreiras para comer uvas. No Chile tive de me agachar diante das videiras verticais para recuperar este comer uvas d’antanho.
Contemplando a neve que vai à infância
Uvas de hoje remetem às uvas de ontem
Como disse antes, Pablo Neruda estava na mira de minha viagem ao Chile. Sou também um viajante de motivos culturais. Assim como em Porto de Galinhas, em Pernambuco, pensei em Caruaru, fui a Caruaru, por Álvaro Lins. Ao ver as montanhas nevadas, invadiram-me os versos que abrem o Canto general (1950) de Neruda: “Antes de la peluca y la casaca / fueron los ríos, ríos arteriales:/ fueron las cordilleras, en cuya onda raída/ el cóndor o la nieve parecían inmóviles:/ fue la humedad y la espesura, el trueno/ sin nombre todavía, las pampas planetarias.” Sim, “el cóndor” , a mesma ave que o brasileiro José de Alencar cantou, fora de espaço, em Iracema (1865): “e a borrasca enverga, como o condor, as foscas asas sobre o abismo”. Meditei nisto também, extrair o condor, ave andina verdadeira, da metáfora fácil do romantismo brasileiro, onde ela sobrevoava, incomodamente, as praias do Ceará. Enfim, viajando, viajando, para acertar o passo de minha literatura mental. Ou viajar mais além, “muito além daquela serra”, pelas palavras que me acompanham em viagem.
Eu estava lá, nos calcanhares dos Nerudas, Pablo e um ancestral.
Ou seja, muitos anos depois, diante do pelotão de lembranças, no alto dos Andes, eu haveria de lembrar aquele dia em que, no coração do inverno de 1965, a irmã mais velha de meu amigo Eugênio Pozza, Eunice, fizera bonecos de neve nas calçadas de Bento Gonçalves, encantando-nos a todos, os menores que ela. Ou seja, não havia presente nem passado, mas uma linha entre um tempo e outro.
Diante do Palacio de la Moneda,
histórica referência cultural-política do Chile.
Também o cineasta chileno Miguel Littín me veio ao pensamento. E as ruas de Santiago se me afiguraram aqui e ali ocultas, policialescas e traiçoeiras.
E as ruas de Santiago lembravam a aventura de Littín clandestino
e “Desaparecido”, filme de Costa-Gavras
filmado no Chile para tratar da ditadura
de Pinochet: misteriosas e estranhas
Tudo me descia nos olhos como se eu estivesse ali, no Chile, naquela vez em que Littín entrou clandestinamente em Santiago sob as barbas da ditadura de Pinochet para filmar o povo de seu país. O documentário que Littín viria a produzir com esta loucura: Acta general de Chile (1986), exibido no Festival de Cinema Internacional do Rio de novembro de 1986, no vasto auditório do Hotel Nacional, em São Conrado, lotadíssimo, tanto que, chegando um pouco atrasado, tive de assistir de pé. O escritor colombiano Gabriel García Márquez, tomando longos depoimentos de Littín em Madri, escreveria um livro-reportagem em primeira pessoa chamado A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile (1986). Ambos, filme e livro, significam pontos notáveis do cinema de um e da literatura de outro. E ambos têm este Chile perturbador como cenário e como atmosfera. Estive lá, posso dizer, muitos anos depois de ter visto o filme e lido o livro, num tempo em que só existe a sensação (linha) de tempo.
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br