O Dominio de Peckinpah
O cineasta norte-americano Sam Peckinpah tem o dominio do espectador
O cineasta norte-americano Sam Peckinpah tem o domínio do espectador; e para diferenciar este conceito daquilo que Hollywood gosta muito de fazer, paparicar as plateias em suas facilidades emocionais, é bom acrescer que o que Peckinpah faz se exercita a partir da personalidade estética e não de objetos-padrão do cinema. Rever qualquer um dos grandes filmes de Peckinpah é uma experiência de ascese cinematográfica a que dificilmente o espectador resiste sem gangrenas. E Sob o domínio do medo (Straw drogs; 1971) é uma narrativa onde a peculiar atmosfera de violência parece sempre ser única na história do cinema; todos os exageros gratuitos da personagem de Dustin Hoffman (em desempenho memorável) só não desandam morro abaixo porque atrás das câmaras está uma cabeça de cinema como a de Peckinpah: nas mãos de outros, aqueles elementos de composição viraram esquemas caricaturais e simplórios nos anos seguintes de Hollywood.
Peckinpah usa o disfarce dum pacato e rígido professor de matemática para nos jogar diante do chacal humano. Este professor, David (é com o rosto que Dustin dá profundidade a esta criatura), é casado com uma garota que adota travessuras de adolescente dentro do casamento com o sisudo matemático; esta garota, Amy (interpretação sinuosa de Susan George), está com seu marido vivendo no interior da Escócia, quando lhe aparece um ex-namorado e um bando estranho oferecendo-se como trabalhadores nas reformas da casa. A perversidade é latente em todos os enquadramentos do filme e vai explodir na sequência do estupro, quando o ex-namorado e os obreiros, desviando o professor para uma caçada, violentam a mulher. São imagens instáveis, complexas, fundamente erotizantes, que na verdade completam o erotismo insinuado daqueles planos iniciais do filme onde os mamilos de Amy/Susan aparecem ao olho do observador sob uma roupa transparente. Paradoxalmente, esta cena de estupro de uma “violência quase consentida” é uma das grandes cenas de amor da história do cinema, tanto quanto aquela de Marlon Brando espremendo Maria Schneider contra uma parede de apartamento em O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Bertolucci. A ensaísta norte-americana Pauline Kael sentiu-se afetada pela cena de Peckinpah como mulher (e no entanto ela adora tudo o que Bertolucci pôs em seu tango); ela observa que “o estupro tem calor, e o que entra nesse calor é a velha atitude masculina de bar: ela está pedindo.” Se o machismo violento de Peckinpah desorientou uma analista experiente como Pauline, é bem a evidência de que o domínio cinematográfico de Peckinpah não é coisa de amador, é algo bastante ligado a uma estética das imagens que nem sempre foi bem compreendida em seu tempo.
O vulcão crescente de violência que Peckinpah constrói em Sob o domínio do medo, erigindo a personalidade da criatura de Dustin no indesejável condutor de nossa animalidade, é um dos achados estilísticos mais apaixonantes do realizador: há aí uma rara felicidade de andamento narrativo. Apesar de muitas vezes copiado por fragmentos no cinema americano, Peckinpah não tem verdadeiros seguidores. O que mais se aproximaria, recentemente, de uma invenção estética da violência seria Rejeitados pelo diabo (2005), do norte-americano Rob Zombie. Alguns tentam evocar o óbvio: o também norte-americano Quentin Tarantino. Mas o sarcasmo de linguagem de Tarantino se distancia bastante do senso trágico que Peckinpah imprime às suas encenações.
Para se aquilatar a influência de Peckinpah em todas a latitudes do cinema, basta ver como o igualmente norte-americano Brian de Palma presta sua sutil homenagem a Peckinpah em seu maravilhoso Redacted (2007), citando, no meio de sua colagem bélica, a famosa e impagável cena do escorpião triturado por formigas na abertura de Meu ódio será sua herança (1969); no filme de De Palma a citação é curta, e De Palma agora teve o bom senso de não tentar copiar a inaudita violência visual do mestre, ficou somente numa referência tão esquiva quanto preciosa.
P.S.: Em Meu ódio será sua herança um grupo de crianças, agachadas no chão dum descampado desértico, rindo-se a valer, diverte-se com a cena dum escorpião cujo corpo é massacrado por uma multidão de formigões, enquanto se dão os créditos iniciais e ao largo das crianças cavaleiros de cataduras duronas (os protagonistas) passam... cavalgando. Em Redacted, quase no início, um soldado observa, divertido, por uma lente cinematográfica, um escorpião sendo comido por formigas; a quantidade dos animaizinhos devoradores no filme de Peckinpah é bem maior.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br