Houellebecq no Domnio da Luta
Extenso do Domnio da Luta, o primeiro romance lanado pelo francs Michel Houellebecq, j teve uma verso para o cinema rodada por um tal de Philippe Harel
Na primeira edição de 2015 da revista satírica francesa Charlie Hebdo se vê uma caricatura do romancista Michel Houellebecq. Encimando o desenho, a frase: “as predições do mago Houllebecq”. Ao lado do desenho, indicando as falas da personagem, outras duas frases: “Em 2015, perco meus dentes...” E “Em 2022, faço Ramadan!” Nas orações em tipo pequeno que estão acima do título da publicação, lemos algumas provocações religiosas. “Jesus, ele existiu?” é a primeira frasezinha, “Ainda se precisa disto!” é o espanto irônico que fecha este grupo de dizeres em tipo menor. Quer dizer: os jornalistas estão questionando se o mundo de hoje ainda precisa destas bobagens das religiões, qualquer religião. Charlie Hebdo, a revista, tem um subtítulo: jornal irresponsável. No dia 07 de janeiro de 2015 se daria o lançamento do novo romance de Houllebecq, Soumission, que tratava justamente duma profecia do escritor: ambientada na França de 2022, a narrativa mostrava um país dominado pelos muçulmanos, com um presidente muçulmano. No fim da manhã deste 7 de janeiro, o fato: dois jovens franceses de ascendência muçulmana atacam a sede da Charlie Hebdo e matam doze pessoas, alguns eram cartunistas muito estimados na França, conhecidos especialmente por uma veia que lhes permitia debochar de tudo e de todos. Charlie Hebdo era, até agora, praticamente, desconhecida fora da França; os criminosos muçulmanos a fizeram conhecida internacionalmente. Houellebecq sobreviveu, mas é um alvo, como um possível inimigo do Islã. Está atualmente fora de Paris e sob proteção policial, no momento em que escrevo estas linhas. Sua literatura, com esta propaganda mortífera, passa a ser ainda mais procurada do que já era. No Festival de Cinema do Rio de 2014 foi exibido um filme de Guillaume Nicloux, O sequestro de Michel Houellebecq (2014): trata-se duma brincadeira marqueteira do escritor, a simulação dum sequestro para promover o então novo livro de Houellebecq, O mapa e o território (2010). Então, neste janeiro sombrio na França, em que, segundo relatos da imprensa francesa, vão seguir dias tão longos de medos e rumores, a brincadeira torna-se séria: o deboche dos cartunistas leva-os à morte e o espírito derrisório de Houellebecq faz com que de fato um episódio criminoso (no filme em que ele atuou era um sequestro inventado) sirva de propaganda inimaginável para seus textos. Dois livros de Houellebecq já foram filmados (Extensão do domínio da luta foi filmado em 1999 pelo francês Philippe Harel e nunca foi exibido no Brasil; Partículas elementares, realizado pelo alemão Oskar Roehler, teve circulação internacional), mas nada se compara à capacidade de divulgação duma obra literária como estes episódios de janeiro de 2015 na sede da Charlie Hebdo. O bem e o mal se juntam: Houllebecq vai ficar ainda mais rico, mas já não poderá dizer da literatura, como o fez numa entrevista recente ao escritor e jornalista gaúcho Juremir Machado da Silva, que “se pode mergulhar num turbilhão sem arriscar a própria vida” ao escrever.
Aliás, foi Juremir quem lançou Houllebecq no Brasil, traduzindo seu livro Extensão do domínio da luta (Extension du domaine de la lutte; 1994) para uma editora gaúcha, a Sulina. No texto abaixo, escrito em 2002, analiso esta primeira luta do ficcionista francês. No fundo, talvez tudo já estivesse lá.
Extensão do domínio da luta (1994), o primeiro romance lançado pelo francês Michel Houellebecq, já teve uma versão para o cinema rodada por um tal de Philippe Harel, exibida há algum tempo atrás pela televisão a cabo numa sessão vespertina de meio de semana; por esse motivo (o horário) não pude ver o filme. O nome de Philippe Harel é desconhecido para mim. Ao ler a tradução brasileira para o português muito particular do escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, a cada página, surpreso e esmagado pelas frases agudas do narrador do livro, me ocorria a ideia de que uma linguagem tão descarnada em literatura só poderia ser contemporânea duma época cinematográfica. Como escreveu o crítico de cinema José Carlos Avellar em O chão da palavra: cinema e literatura no Brasil (1994), quem escreve vê filmes, quem faz filmes lê livros, ou seja, escritores e cineastas de nosso tempo se influenciam mutuamente; como muitos homens de hoje, Houellebecq deve ser um cinéfilo, em Partículas elementares (1998) chega a referir o diretor de cinema Jean-Luc Godard, neste Extensão há uma cena dura vivida pelo protagonista no interior duma sessão de filme pornográfico, penso novamente em Avellar que equipara a aparição em filme duma personagem que folheia as páginas de um livro à referência a filmes ou sessões de cinema que um autor faz num romance, cinema e literatura citam-se um ao outro. De fato: sem perder sua grandeza especificamente literária, Extensão do domínio da luta não deixa de ser um romance cinematográfico. Que cinema está dentro do romance de Michel Houellebecq? Não conheço o cinema de Philippe Harel, não sei que tipo de filme ele faz. Sei que Houellebecq faz uma literatura próxima daquele cinema meio sujo, meio desfocado, pouco ou nada iluminado (como a vida de nossos dias) praticado pelos realizadores dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Wintenberg; as frases diretas, sem meios tons, sangrando de um novo realismo inventadas por Houellebecq correspondem àqueles movimentos de câmara enforcados e fora de foco dos cineastas do Dogma 95.
De uma certa maneira, Houellebecq refaz, ao jeito deste fim de milênio, o homem nauseado criado por Jean-Paul Sartre num dos principais romances franceses do século XX; como Sartre, Houellebecq se vale dum texto duro, inconformista, sombrio, pesado para revelar a miséria humana. Diferentemente de Sartre, Houellebecq afasta-se da reflexão existencialista e vai em busca duma narrativa verdadeiramente libertina (em seus aspectos formais) e cheia de aparentes desvios e acasos que constroem um tipo novo de unidade literária. Como Sartre, Houellebecq é o anti-Flaubert: despreza as frescuras linguísticas e estéticas. Em um certo momento supremo de ironia o narrador de Houellebecq, com seu sarcasmo característico, cria um novo gênero literário, o bestiário, que mesmo tratando de bestas não se desfaz de uma certa “meditação ética”.
Em Extensão do domínio da luta Houellebecq acompanha implacavelmente o cotidiano de um homem sem esperança, que vive incisivamente seu tédio afetivo. Num raro senso sígnico este protagonista de Houellebecq é especialista em informática, protótipo das facilidades contemporâneas e ao mesmo tempo um meio em que o emburrecimento (e o embrutecimento) humano viceja. A vida não tem sentido. “Acabo de fazer 30 anos”, vai apresentando-se a personagem, para depois desenvolver algumas das linhas mais terrivelmente ásperas da literatura de hoje. “Não pretendo encantar ninguém com sutis observações psicológicas.” A psicologia usada literariamente por Emily Brontë se esboroa ao deparar com um ser de hoje. “O terceiro milênio mostra a sua cara.” Se vivemos a época de todos os desgostos, por vias transversais a arte (no caso a literatura de Houellebecq) nos traz o gosto por viver, ao menos para ler alguns bons livros ainda que tratem de coisas más (o paradoxo).
Michel Houellebecq, ou os narradores de seus livros, já foi tachado de moralista retrógrado. Inevitavelmente surge um certo esquivo moralismo em alguns passos de sua narrativa. “Em certo momento, uma abobada começou a despir-se.” Mas a linha geral de seu texto é pura irreverência, este “abobada” é mais um petardo do que uma colocação moral, o aparente moralismo é pura insatisfação com a prepotência —a prepotência econômica, a prepotência sexual, a prepotência afetiva. Reunindo tudo, pode dizer-se que Houellebecq é um ficcionista adiante e aquém de seu tempo: tenta recuperar no desespero de alguns valores antigos e perdidos e propõe uma forma literária justificadamente incompreendida por seus contemporâneos, mesmo por aqueles que amam seu texto.
A novidade da ficção de Houellebecq não nasce de uma proposta de linguagem, como no irlandês James Joyce. Nem de uma revolução estrutural, como no português António Lobo Antunes. Nem mesmo de um aprofundamento das metáforas, como é o caso do paraguaio Augusto Roa Bastos. A renovação do autor francês vem da criação de um clima literário próprio, assim como ocorria em Louis Ferdinand Céline e em Franz Kafka. Como num verdadeiro romance (a teoria remonta ao arqueológico crítico literário brasileiro Álvaro Lins), muitas vezes as partes individualmente consideradas são até triviais; o que é soberbo é o conjunto, e isto só pode ser degustado durante a leitura continuada.
Voltemos a 2015, 2002 termina ali, nesta leitura continuada. Como meditar sobre a literatura essencial de Houellebecq quando uma avalanche midiática se esforça por deformá-la? Para o amante dos livros, estas coisas necessariamente estorvam a fruição dos textos, porém ao mesmo tempo fazem parte da própria excitação de desfrutar duma obra de arte. Como se libertar das curiosidades extraliterárias, para, mesmo usando-as, como faço aqui, permanecer fiel à própria inocência primitiva da literatura?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a dcada de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicaes de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br