De Livro, Filme e uma Anotacao em Jornal

um homem de letras, cujos refinamentos narrativos nao parecem estorvar as simplicidades de seus achados

18/08/2022 12:55 Por Eron Duarte Fagundes
De Livro, Filme e uma Anotacao em Jornal

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Boa parte da divulgação internacional do escritor inglês Ian McEwan se deu pelas versões cinematográficas de seus livros no cinema.  McEwan no entanto é mais do que isto: um homem de letras, cujos refinamentos narrativos não parecem estorvar as simplicidades de seus achados. É o que se depreende da leitura de O jardim de cimento (The cement garden; 1978), um de seus trabalhos não muito aludidos.

Um bom exemplo de simplicidade de achados dentro do inesperado de uma controlada sofisticação é a parte inicial do capítulo 6. O narrador em primeira pessoa (é a personagem Jack quem narra o livro) começa descrevendo o dia em que seus pais se retiraram de casa para um enterro e ele, suas duas irmãs e seu irmão menor ficaram sozinhos e aprontaram todas, desde o grito de guerra de Julio dando um soco nas costelas de Jack, passando pela briga de travesseiros, pelo mal-estar das fezes de Tom e até a bagunça à porta da chegada dos pais. “Foram só algumas horas, mas pareceram ocupar um bom pedaço de minha infância. Meia hora antes de nossos pais chegarem, rindo sem parar por causa do risco que corríamos, começamos a pôr tudo em ordem.”

As descrições das cenas de casa por McEwan, tanto aqui quanto em outras partes da narrativa, são tão sucintas quanto intensas.  O lance central viria depois, quando o narrador associa aquele dia perdido e luminoso na infância ao dia em que sua mãe morreu. “Quando mamãe morreu, por trás das emoções mais fortes havia uma sensação de aventura e liberdade que eu mal admitia a mim mesmo e que derivava daquele dia vivido cinco anos antes.” É uma associação proustiana e também pós-proustiana, sem os mecanismos formais de textos densamente conectivados do original de Marcel Proust. É algo parente daquilo que o belga Georges Simenon fez na abertura de Maigret se diverte (1970), equiparando um pedaço da existência da personagem (ele está em férias em Paris, em sua casa, e observa o que ocorre no dia-a-dia em que habitualmente ele não estaria em casa) com outro pedaço perdido na infância (um dia de gazear, por doença ou por calendário mesmo, vendo as atividades comuns que sucediam em sua ausência em outros dias como aquele). Simenon é ainda mais conciso que McEwan; mas ambos revertem um processo pós-proustiano de memória.

Tratando essencialmente da miscelânea do incesto (no fim Jack acaba penetrando, sexualmente, sua irmã Julie), das perturbações de identidade sexual (o pequeno Tom ama vestir-se de mulher) e das tensões das ásperas famílias britânicas, O jardim de cimento é freudiano desde seu início. Jack abandona o trabalho com seu pai, no jardim, para masturbar-se no banheiro, e seu pai vem a morrer enquanto tentava acimentar sozinho. A frase que abre a novela: “Não matei meu pai, mas às vezes tinha a impressão de que o havia ajudado a ir desta para a melhor”. O jardim de cimento começa matando, indiretamente, o pai. A morte da mãe também significa liberdade. A gandaia dos irmãos é uma tentativa de explodir os cimentos de jardim postos por mãe e pai.

UM FILME

Bem antes do diretor inglês Joe Wright transformar seu patrício Ian McEwan num fenômeno de conhecimento internacional pelas massas, outro diretor inglês, Andrew Birkin, investiu na transformação da literatura de McEwan em cinema, em O jardim de cimento (The cement garden; 1993). O resultado é interessante; se o livro de MCEwan é uma tangente de obra-prima, por suas construções verbais e temáticas entrelaçadas com aquela própria e rigorosa sutileza britânica, o filme não chega a tanto, pois inevitavelmente perde em suas imagens certos sabores literários intransponíveis para filme, mas sabe valer-se duma linguagem áspera em imagem e som para dar certas características daquela estranha família concebida originalmente por McEwan.

O filme, como o livro, passa-se num seio familiar em que, após a morte dos pais, Jack (a principal personagem, no livro é a que narra, no filme é o centro da câmara), Julie, Tom e Sue, irmãos, passam a viver seus desejos de maneira mais livre. Jack e Julie vão semeando sua atração incestuosa, até a consumação final (que ocorre tanto em McEwan quanto em Birkin). Tom se traveste de menina: homossexualismo disfarçado. Não há, no filme, aquela que é a melhor cena do livro: no dia em que os pais vão a um enterro, as crianças aprontam todas; as descrições de McEwan são exemplares. Mas a sequência que alterna a masturbação de Jack no banheiro da casa e aquela no jardim, abandonado pelo filho que o ajudava, do pai, que jaz morto, é notável no filme; a escritora brasileira Alessandra Rech, de Caxias do Sul, observa a sensibilidade significativa que, penso eu, é na verdade áspera; “não matei meu pai, mas às vezes tinha a impressão de que o havia ajudado a ir desta para a melhor”, anota Jack na abertura da novela de McEwan.

Birkin é irmão da cantora e atriz Jane Birkin. A sobrinha do diretor, Charlotte Gainsbourg, filha de Jane, está em seus inícios neste filme, e surge forte na pele de Julie. Um filho do cineasta, Ned Birkin, é Tom, o irmão que se veste de mulher. Assim, Birkin compõe, no próprio set, uma crônica familiar que pode refletir-se na crônica de ficção que instala diante das câmaras.

DAS OBSERVAÇÕES DE ALESSANDRA RECH

“Entre os autores contemporâneos cuja obra já pode ser considerada um clássico, o inglês Ian McEwan conquistou-me pela capacidade de dizer muito em poucas linhas. Minimalista na trama e na linguagem, o romancista tem algo em comum com o que caracteriza o bom cronista: sabe apresentar um corte transversal de uma realidade e oferecer-lhe olhar próprio, sugestivo.” (Alessandra Rech, na crônica “Paisagismo íntimo”, publicada no jornal “Pioneiro”, em 26.11.2013).

“É possível um paralelo entre o ato de cimentar a vida do jardim e o controle que se faz cada vez mais intenso dentro de casa, quando três dos quatro filhos já estão nas brotações da adolescência. O conservadorismo, como camada de cimento, se espalha pelas ruas sujas do subúrbio e se estende até anuviar o céu da cidade inteira. Essa extensão é perceptível na adaptação para o cinema de 1993, dirigida por Andrew Birkin e estrelada pela densa Charlotte Gainsbourg. Filme que tem o mérito de não restringir a obra original.” (Alessandra Rech, publicação citada).

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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