Um Tempo Fora do Tempo

As crônicas para jornal de Liberato Vieira da Cunha se põem bastante à margem daquilo que o jornal (diário) apresenta

13/08/2014 16:35 Por Eron Fagundes
Um Tempo Fora do Tempo

tamanho da fonte | Diminuir Aumentar

 

Liberato Vieira da Cunha é o cronista de um tempo situado fora do tempo. Suas crônicas para jornal se põem bastante à margem daquilo que o jornal (diário) apresenta, como linguagem e como fatos. Os elementos que parecem mais interessar à mente de Liberato são etéreos, mesmo quando estes elementos vêm, materialmente, do cotidiano, o mesmo cotidiano que alimenta o jornal; e Liberato vai apresentar a seu leitor uma linguagem que busca corresponder a estas vagas semipoéticas com que seu cérebro enxerga os elementos do mundo. Deslocadas para um livro, as crônicas de Liberato topam sua feição mais nobre, é claro; mas aí se opera um fenômeno que vem da convivência do texto de Liberato com o texto ao lado no jornal, a espontaneidade do dizer, a naturalidade das frases, o quase tom oral com que se “ouvem” os caracteres da escrita.

Autor de dois belos romances (As torrentes de Santaclara, 1993, e O homem que colecionava manhãs, 2004), Liberato é basicamente um cronista, um poeta da vida real; e neste aspecto ele se aproxima de Machado de Assis, que escrevia muitas crônicas nos espaços entre seus romances e contos e compunha romances e contos como quem queria na verdade escrever crônicas inventadas. Todas estas dispersas considerações em que me expresso surgem agora diante de mim quando Liberato vem de publicar mais um livro de crônicas, O silêncio do mundo (2013), coletânea do que ele mandou para o jornal entre 2002 e 2013; são vários os momentos excedentes nestes textos de, digamos assim, apaixonada reflexão lírica que muitas vezes vão ter a um formato de parábola que pode oscilar entre um ensaio-frase de Michel de Motaigne e as saídas morais de Blaise Pascal, sem deixar de ter esta ingenuidade nossa, provinciana e gaúcha, provocativamente num tempo que está fora do tempo em que vivemos do lado de cá da escrita.

Se vários são os instantes que transbordam da singeleza e da poesia, este comentarista apanha o parágrafo final de Naquele tempo, em Capão (notem os fundamentos desta vírgula, facultativa, depois deste substantivo quase abstrato que é tempo), para ver ali, naquelas evocações duma revisita a um tempo-espaço que existe somente na cabeça do narrador, um símbolo do próprio ato literário de Liberato Vieira da Cunha. A Capão da Canoa da meninice e da adolescência da autopersonagem de Liberato existe fora do tempo; o encontro com o tempo habitual é um choque. Por isso, quando “me convidaram gentilmente a dar uma volta pela orla e pelo Centro”, eis “recusei com a devida educação e firmeza”, pois “prefiro guardar na memória o caleidoscópio que volta e meia encanta minhas insônias”. Liberato escreve da memória. Mas não é daquela memória que ouvimos todos os dias, de escribas corriqueiros  e de indivíduos corriqueiros. É tão espantoso que seu texto sobreviva diante do texto vizinho no jornal quanto a sobrevivência de suas inquietações num mundo que as hostiliza.

Liberato talvez seja uma versão gaúcha e modelo século XXI do escritor mineiro Cyro dos Anjos, que abria seu romance O amanuense Belmiro (1937) com a irônica observação: “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis.” As torrentes de Santaclara começa com “Pela altura do terceiro uísque, uma aura dourada costumava envolver a Criação”. Enfim, na crônica de Liberato a que aludi no parágrafo precedente, o cotidiano de outrora evocado (café-concerto, cubas-livres, um filme no cinema, a bossa nova, a namoradinha) contracena com os míticos eternos, por exemplo, “em contraponto ao murmúrio noturno das ondas”. É o autor em busca do tempo da memória: uma memória que talvez só possa ter existência literária, nesta peculiar linguagem em que está vazada.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

Linha
tamanho da fonte | Diminuir Aumentar
Linha

Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

Linha

relacionados

Todas as máterias

Efetue seu login

O DVDMagazine mantém você conectado aos seus amigos e atualizado sobre tudo o que acontece com eles. Compartilhe, comente e convide seus amigos!

E-mail
Senha
Esqueceu sua senha?

Não é cadastrado?

Bem vindo ao DVDMagazine. Ao se cadastrar você pode compartilhar suas preferências, comentar ou convidar seus amigos para te "assistir". Cadastre-se já!

Nome Completo
Sexo
Data de Nascimento
E-mail
Senha
Confirme sua Senha
Aceito os Termos de Cadastro