Alabarse Dirige Schwartsmann: Rigor e Humanismo

As citacoes a literatura e ao teatro abundam em O Sol Brilhou na Corrupnia

09/09/2022 14:04 Por Eron Duarte Fagundes
Alabarse Dirige Schwartsmann: Rigor e Humanismo

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Gilberto Schwartsmann, médico oncologista, é uma cabeça da área científica ligada às humanidades. É uma ponte benfazeja que permite fazer uma ligação interdisciplinar que anda meio dispersa no século XXI e que é o escopo de um pensador atual pan-ecumênico, o francês Edgar Morin. Gilberto, cuja vida sempre se inquietou com coisas como a literatura, o teatro, a música, só tardiamente começou a dar as caras deste seu lado com a publicação de livros. Buscou ensaios (que às vezes pareciam romances), romance (que apresenta ares de ensaio), poesia (que se faz de peça ensaística). E finalmente chegou a ousar uma peça teatral. O drama que ele escreveu: O sol brilhou na Corrúpnia (Simurgh, a ave sagrada) (2022). Os nomes estranhos (Corrúpnia, o país falsamente imaginário, e Simurgh, o pássaro-mito do Oriente) convidam o leitor a um mergulho no drama do conhecimento.

As citações à literatura e ao teatro abundam em O sol brilhou na Corrúpnia. O texto de Schwartsmann é uma densa homenagem à palavra, à palavra ao longo das eras e ao que fez da palavra o homem em séculos variados. Brecht, Shakespeare, Dostoievski, Dante, Pavlovsky, Bechett são copersonagens da peça brasileira. Ao serem muitas vezes reencenados e repensados por Oneirópolos, o homem, e Disoíonos, a mulher, dois atores idosos isolados na demência dum asilo pelo desinteresse por cultura no país, estes grandes do passado se igualam às criaturas cênicas inventadas mais diretamente pelo autor da atual peça: encarcerados num castelo, uma espécie de museu, ou gabinete de curiosidades, para usar uma expressão do livro de poesia anterior de Gilberto e que em determinado diálogo do drama teatral é recapitulado pelas personagens; a velhice e o artista, longe duma sociedade utilitarista mas no entanto necessários para humanizar esta mesma sociedade. No texto final da peça, Disoíonos convoca a plateia a assistir a peças de Shakespeare e Brecht, e Oneirópolos faz a conclusão, “essa arte incrível produzida pela espécie humana ao longo da nossa história!” O sol brilhou na Corrúpnia é, assim, um hino de amor ao teatro. Neste aspecto, o fecho do drama teatral está muito próximo da conclusão de Max e os demônios (2020), quando Schwartsmann anota: “Tenho a esperança de ter passado o amor que sinto pelos livros.” É o amor à arte, em suas diversas formas (do amor e da arte), o que move pessoas como Gilberto Schwartsmann.

 

NO TEATRO

 

Luciano Alabarse se abalançou a levar ao palco O sol brilhou na Corrúpnia. A dramaturgia permaneceu a cargo de Gilberto Schwartsmann. O título do drama teatral foi alterado e, enviesademente, chupou a expressão do livro anterior de poesia de Gilberto. A peça chama-se Gabinete de curiosidades. O sentido, parece, é que o asilo isolado onde se movem dois velhos atores que sonham com ressuscitar (ou ressuscitar-se no) o teatro é bem isto, um gabinete de curiosidades, que é o ancestral dos museus.

Alabarse é um grande encenador teatral, dotado de grande senso do espaço cênico. Escreveu que, ao ler o texto de Gilberto, logo percebeu o potencial de encenação no palco do que ali ia escrito. E a bela oportunidade de pôr em xeque o atual problema da sociedade (e da sociedade brasileira especialmente) para com duas categorias de indivíduos, o velho e o artista; ignoradas pelo mundo mecanicista, a velhice e arte são autênticas peças de resistência naquilo que Alabarse logra extrair do texto de Schwartsmann.

Basicamente, o texto (com suas diversas giratórias citações) é o mesmo que se pôde ler em livro. As breves alterações de rumos da palavra são para dar uma dinâmica ao ato de encenar. Alabarse, desde suas encenações mais antigas, lá pelos anos 80 do século passado, tem seu estilo teatral: é um autor do que faz no palco, ainda que vasculhe obras tão diferentes entre si. Alabarse sabe usar o espaço de um palco como poucos; seus cenários são habitualmente preenchidos por muitos objetos de cena, e o espectador fica extasiado diante da sensibilidade e precisão com que ele dispõe a utilização dos cenários no exíguo espaço. Quem revocar à memória alguns de seus trabalhos de outrora, sabe do que estou falando. Pode ser que seja só o leiteiro lá fora (1983) trazia um texto de Caio Fernando Abreu apresentando o calor da hora: os delírios das personagens correspondiam aos delirantes cenários. Reunião de família (1984) partindo dum romance de Lya Luft, adaptado por Caio Fernando Abreu, tornava ainda mais refinado o uso de vários objetos cênicos, circundados por muitos espelhos. O balcão (1986), investindo numa peça de Jean Genet, permitia a Alabarse aprofundar-se cada vez mais na mistura do barroco com o impressionismo (sensações) e o expressionismo (questões simbólicas). Podemos reencontrar as obsessões e o rigor de encenação de Alabarse em Gabinete de curiosidades, mostrando um artista que chega ininterrupto no século XXI.

No fundo do cenário, uma parede repleta de roupas que parecem de época. Mais para cá, uma estátua. Mais próximo, há poltronas, bancos, tapetes. Dois toucadores atulhados de coisas: novamente os espelhos (os artistas são vaidosos...). Fernando Zugno é um comentador breve e esporádico da ação. Mas a arte da interpretação está entregue a Arlete Cunha (que há alguns anos encarnou Hilda Hilst, a poetisa paulista) e a Zé Adão Barbosa, que vivem com autenticidade os dois velhos atores esquecidos num asilo concebidos originalmente por Schwartsmann.

Sim: a encenação de Luciano é um autêntico gabinete de curiosidades, que cabe ao espectador teatral trilhar, descobrir. Gabinete de curiosidades, a peça teatral de Luciano/Gilberto, vai pelo mesmo caminho do drama escrito por Gilberto, O sol brilhou na Corrúpnia: o amor ao teatro e, extensivamente, à arte. Cada um à sua maneira, um existindo em livro, outro naquilo que se vê no Teatro São Pedro. Um e outro em determinado momento se ligam por um trecho autocômico e que no palco adquire uma curiosidade: quando os velhos atores da peça sonham com levar ao palco do Teatro São Pedro o drama que estão montando no asilo, é como se o texto de Gilberto lá atrás fosse premonitório. Quem está no palco do São Pedro são Arlete e Zé Adão, mas com eles vão juntos Disoíonos e Oneirópolos.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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