A Narrativa Critica em Alvaro Lins

Poucas vezes um texto critico sobre literatura foi tao agudo como nesta viagem proustiana de Alvaro

21/05/2023 03:59 Por Eron Duarte Fagundes
A Narrativa Critica em Alvaro Lins

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Em tempos antigos, um jovem de dezessete anos, que se escondia da luz do sol em cantos mal iluminados duma biblioteca, lia num desses cadernos críticos que se devia vencer a preguiça, preguiça que convidava a leituras digestivas, e, em vencendo esta preguiça, mergulhar num texto mais espinhoso porém mais produtivo como o de Marcel Proust. Quem fazia estas anotações aforísticas, falando de si mesmo, de sua ação como leitor, era o crítico brasileiro Álvaro Lins, com quem o jovem de dezessete anos se sentia em casa e, ainda agora, aproximando-se dos setenta, a identidade é forte. Álvaro nasceu em Caruaru, Pernambuco, em 1912; faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1970, aos 57 anos. Aquela anotação sobre a necessidade de leitura de Proust estava observando uma construção de um dos mais engenhosos processos de ler da literatura brasileira. O resultado viria no ensaio A técnica do romance em Marcel Proust (1951). Poucas vezes um texto crítico sobre literatura foi tão agudo como nesta viagem proustiana de Álvaro: entre o menino que se banhava na segunda década do século XX no rio nordestino Ipojuca e o indivíduo que se criara nas elites das redondezas do Sena, em Paris, uma identidade criada pela magia da literatura.

Álvaro capta —como ninguém, antes e depois dele— a imersão de Marcel Proust na arte literária. Começa identificando o artifício temporal em torno do qual o romance de Proust se edifica. “Pois o romance termina no momento mesmo em que se anuncia que vai ser começado.” Para Álvaro, Proust é o artista literário por excelência. Mas não é um esteta dândi, no sentido de um Oscar Wilde, onde um imaginário às vezes anedótico superficializa a questão. Proust vai mais além, aprofunda-se: sua investigação estética é a busca de compreender o humano; sua estética, feita de formas, humaniza-se na densidade com que constrói suas personagens. “Daí por diante sentir-se-á desligado dos outros seres, conservando das relações de amizade as fórmulas convencionais, sem mais conteúdo. A sua humanidade será só a da sua arte. Este o problema da solidão de Marcel Proust, que se situa no centro da sua criação literária.” Anota Álvaro que Proust primeiro viveu (a vida dos salões aristocráticos na França) para depois converter sua vida em arte (os salões são muitas vezes cenários desta conversão mas transmutados em sua superficialidade, pela profundidade da arte de Proust).

“Deste modo as personagens de Proust se acham destituídas de lógica, de uma lógica digamos exterior ou formal. Isto representa uma excelência na ficção; não é um defeito. Personagem lógica é personagem medíocre, prisioneira de estreitos limites, com as suas intenções já calculadas e os seus atos já previstos pelo próprio leitor.” Odette em algum momento é a senhora Swann, em outro é a cortesã, em algum outro pode estar cometendo adultério à socapa. “Uma sensação de horror, porém, que não é de natureza moral: é de natureza exclusivamente estética.” Álvaro insta sempre: personagens e situações num romance (de Proust, em especial) são construções, não se confundem com a realidade, a arte é o que Álvaro  chama “superrrealidade”. Sim: “a arte não é a mesma coisa que a vida”. É um outro mundo: ou uma outra vida. Álvaro Lins põe na página sua própria narrativa crítica (ou uma poética) para seguir Proust em sua empreitada. Como observou antes enquanto lia o romance: vencer a preguiça, aceitar o desafio proustiano.

O centro, talvez, da narrativa de Proust é atacar a questão da arte como espírito. Mas uma espiritualidade que se aparta de qualquer igreja, culto ou crença. Falo de Proust, seu romance sempre em minha mente; mas na mesma frase está contido meu pensamento na narrativa crítica de Álvaro; é só substituir um nome por outro, não fará diferença nem haverá equívocos. “Nem Deus, nem a vida sobrenatural de pecado, constituem elementos do romance de Marcel Proust. Não se poderá dizer que ele tenha sido um materialista em qualquer sentido da palavra, pois iluminou o seu mundo de ficção com uma singular e profunda espiritualidade. O seu sentido, contudo, nada tinha de religioso no sentido de quaisquer igrejas ou cultos organizados; o que fazia nele as vezes da religião, o que lhe infundia a espiritualidade, era a arte, que cultivou misticamente. Participava um pouco de uma velha lenda exótica acerca da presença de almas de entes queridos em certos objetos, os quais se revelam quando temos a fortuna de fazê-los viver por efeito de uma comunicação operada pelos nossos sentidos. Para o Narrador, os mortos não existem mais senão em nós e ressurreição da alma após a morte só é talvez concebível como fenômeno da memória.”

Álvaro Lins vai ter, na frase final de seu ensaio sobre Marcel Proust, numa perspectiva totalizadora sobre o romance (ou conjunto de romances que formam o romance-rio), que, a despeito das múltiplas influências de seus longos anos de leituras e da tentativa de reproduzir o universo de salões em que viveu, é único como obra de arte. “Com A la recherche du temps perdu, Marcel Proust criara um novo mundo construíra um universo de imagens, como outros fundam impérios e religiões.” Edificando, em contraponto, uma narrativa crítica original, pode-se dizer que Álvaro Lins nos põe diante dum universo de conceitos literários tão originalmente à altura de seu objeto de estudo. Passados tantos, tantas mudanças na vida e nas leituras, aquele jovem de dezessete anos retorna aqui para afirmar que quase nada mudou no prazer de ler e descobrir achados em A técnica do romance em Marcel Proust. Resta saber se o vocábulo “técnica”, num tempo de tecnicismo barato (popularizado pelos tempos midiáticos, de tecnologia utilitarista), ainda conserva a acepção que lhe deu Álvaro.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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