O pernambucano Osman Lins, que em Avalovara (1973) revolucionou o romance brasileiro, em A rainha dos cárceres da Grécia (1976), o último livro do escritor, sai em busca de um narrador que possa captar a aventura de narrar em seu próprio fluxo. Consciente, deliberado do que está fazendo, Lins vai colocar como personagem central de seu derradeiro suspiro estético o narrar mesmo, o exercício de sua dinâmica, sua anatomia em funcionamento. Como o faz? Estruturando o livro em forma de diário, o autor põe em cena um rol de preocupações estéticas pessoais a partir das análises fragmentadas que o narrador-personagem faz de um fictício romance escrito e não publicado por Julia Marquezim Enone, falecida amante do narrador; estas investigações sobre a arte do romance, embora calcadas num romance inventado, têm tanta veracidade que seduzem e convencem o leitor, como se estivesse lendo um ensaio. A rainha dos cárceres da Grécia, o romance escrito por Julia, aparece com muita força ao longo de A rainha dos cárceres da Grécia, uma superposição do livro-diário do narrador e do romance composto por Osman Lins com os elementos de Julia e do narrador; as estratificações complexas deste conjunto produzem a obra-prima que é A rainha dos cárceres da Grécia, uma das mais agudas autorreflexões literárias da literatura brasileira, que navega em suas citações de São Bernardo (1934), do brasileiro-nordestino Graciliano Ramos, a Passeio ao farol (1927), da britânica Virginia Woolf; estas referências a livros conhecidos são suportes para o entendimento do romance de Julia e do próprio Lins.

Todo o labirinto estético em A rainha dos cárceres da Grécia é mais árduo e perturbador que aquelas transparentes e límpidas questões de reflexões de narrar que surgem a espaços na trilogia de O espelho partido (1959-1968), do carioca Marques Rebelo; embora ambos utilizem o diário como suporte e enlacem o trivial cotidiano com transcendências literárias, pode-se dizer que as superfícies jornalísticas de Rebelo impedem o mergulho mais radical de Lins. Muitas vezes os paradoxos vagos das notações do narrador estorvam uma aproximação direta do leitor àquilo que está sendo exposto na página; mas uma certa essência de poética crítica é captada.

“A descrição das naus e dos armazéns em fogo toma como referência, manifestamente, a decalcada no Método de redação e opõe, ao ilusório equilíbrio do modelo, uma ordem enganosa e altamente expressiva, peculiaridade —não exclusiva, decerto— de sua poética e no qual a inquietude sintática reflete uma imersão no real, na sua turbulência, uma união, uma harmonia, acordo que as fases agudas de loucura rompem, a sintaxe hirta sendo a expressão desse rompimento.”

Uma sintaxe hirta seria algo meio louco, como em Angústia (1936), de Graciliano Ramos? Teria de ser hirta em delírio: levantei-me há cerca de trinta dias e não consegui desligar-me destas imagens.

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)