A Boca do Lixo e o Deboche Critico
A trama traz na linha de frente Carla Camurati (estreando entao no cinema) e Tania Alves
No começo dos anos 80, o filme O olho mágico do amor (1981), de José Antônio Garcia e Ícaro Martins, buscava contornar as questões reiterativas do cinema brasileiro com um olhar entre furioso e descontraído para o deboche nacional. Um deboche crítico em torno de nossa sisudez. Não levava a sério as questões habituais. E, namorando a vulgaridade comercial, não se permitia propriamente rastejar nas facilidades da vulgaridade. Então, certas coisas do comercialismo das produções pornográficas da Boca do Lixo paulistana pareciam esgotar-se, ou começavam a esgotar-se. E as reiteradas discussões entre esteticismo e preocupações com o popular no cinema brasileiro evidenciavam as poucas saídas das reflexões dominantes. Neste cenário de fazer cinema, O olho mágico do amor, sem transbordos, surge como uma alternativa mais livre. A produção é da Boca do Lixo, as despudoradas cenas carnais abundam de maneira exacerbante e à primeira vista só para excitar exasperantemente o espectador; mas o autodeboche da realização faz com que a narrativa enverede por caminhos de linguagem que apresentam o diferencial de Ícaro Martins e José Antônio Garcia.
No livro Cinema, Estado e Lutas Culturais (1983), José Mário Ortiz Ramos observa sem pestanejar, ao citar este filme e outros dois como suas referências dum cinema brasileiro incipiente: “O quadro é sem dúvida precário, mas são filmes que parecem olhar para o passado recente com simpatia e bom humor, e mostram-se embebidos da liberdade suficiente para contornar os antigos diálogos viciados em torno da cultura brasileira. Sem culpa e sem medo, são obras que apontam para o futuro.”
Talvez, ao longo dos anos, o cinema brasileiro se tenha desviado destas inovações. A concretização de novos olhares se perdeu numa certa fumaça. Mas rever O olho mágico do amor permite o reencontro com esta quadra curiosa de nosso cinema.
A trama traz na linha de frente Carla Camurati (estreando então no cinema) e Tânia Alves, ambas secundadas por intérpretes como Sérgio Mamberti e Ênio Gonçalves. Carla, na força de sua juventude e frescor, tem uma caracterização bastante diferenciada na pele duma jovem ingênua que bate à porta duma Sociedade Paulista de Amigos da Ornitologia em busca de emprego; ela é atendida pelo chefe do setor, na pele de Mamberti, e assume como secretária; durante os dias de trabalho, espiando por um buraco na parede (o tal olho mágico), ela descobre que do outro lado da parede o que há é um prostíbulo, onde uma prostituta vivida por uma já madura Tânia Alves exerce seu ofício (daí: o olho mágico do amor). Neste espiar pelo olho mágico (do amor) da personagem, os cineastas assumem como linguagem o voyeurismo, um pouco à maneira de Alfred Hitchcock em Janela indiscreta (1954); a excitação sexual da secretária vendo a outra mulher transar se estende para a própria excitação do espectador, um voyeur dos corpos nus de Tânia e Carla, que, na cena final, quando Vera/Camurati vai ao encontro de Penélope (Tânia) e transam em imagens que arrebatam por sua intensa sexualidade.
Do começo dos anos 80 para cá, O olho mágico do amor certamente perdeu parte de seu vigor pelas transformações cinematográficas que deparamos; mas ainda sobrevive como um ponto interessante da curva cinematográfica brasileira.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br