A Teoria do Cinema Na Boca do Filosofo
Em Cinema 1 ? A imagem-movimento Deleuze oferece seu sangue de pensador. Como Nietzsche. Aprofunda. Agudiza
Partindo de seus antecessores na filosofia das imagens, o francês Henri Bergson e o americano Peirce, o pensador francês Gilles Deleuze aplica, em Cinema 1 — A imagem-movimento (Cinéma 1 — L’image-mouvement; 1983), suas ideias nascidas na filosofia à experiência do cinema. Sem mistificações, buscando conter, o quanto pode, a tendência francesa às abstrações que se desligam da realidade, Deleuze encaixa seus conceitos muito particulares sobre a imagem cinematográfica indo direta e precisamente à realidade dos filmes, visitando uma gama variada de diretores de cinema e fazendo com que a base teórica se adapte àquilo que teria visto nas telas.
No texto de Deleuze o leitor-espectador depara um enriquecimento de sua própria visão cinematográfica. Sem ser um especialista da área (como o clássico André Bazin), Deleuze traz alguns sopros novos à forma de ver cinema. São três os tipos teóricos que orientam o pensamento de Deleuze neste seu livro sobre cinema.
Ele começa pela imagem-movimento e suas variedades. Antes, ele advertira: “O plano deixará, então, de ser uma categoria espacial, para tornar-se temporal; e o corte será móvel e não mais imóvel. O cinema reencontrará exatamente a imagem-movimento de primeiro capítulo de Matéria e memória.” (Matéria e memória é um livro do filósofo Bergson que estudou a natureza das imagens; foi publicado originalmente em 1896). Deleuze apanha a imagem no momento de crise, em que o espaço não pode ser somente espaço e faz permutas com o tempo. “A crise histórica da psicologia coincide com o momento em que não foi mais possível manter uma certa posição, que consistia em colocar as imagens na consciência e os movimentos nos espaços.” De signo em signo, Deleuze observa como a imagem-movimento (do cinema) se converte em seus avatares: a imagem-ação e a imagem-afecção. Anota que um filme é uma complexa utilização de todos os tipos de imagem: pela montagem, que seria uma combinação das variedades de imagens. Claro: elege A paixão de Joana d’Arc, de Dreyer, como o primado da imagem-afecção, pois afecção “é o primeiro plano, e o primeiro plano é o rosto”, e rostos, sabemos, são com Dreyer, que antecipa Bergman. Deleuze reconhece que o filme de Dreyer é “quase exclusivamente afetivo”. O advérbio “quase” permite supor que a montagem de Dreyer admite outras laterais, algumas circunstâncias modificadoras, mas sem transformar a essência. Já a imagem-percepção, outra variante da imagem-movimento, navega por disparatados universos cinematográficos em Abel Gance, em Jean Epstein, em Marcel l’Herbier, em Federico Fellini. O que há e o que alguém vê em Abismo de um sonho, de Fellini, extraído da linguagem fantasiosa das fotonovelas dos anos 40 e 50? O herói no alto duma árvore celestial (o que sua admiradora vê) ou o herói numa gangorra no chão (o que há!)? Deleuze então discute as dificuldades de se distinguir o subjetivo e o objetivo numa imagem.
Em Cinema 1 — A imagem-movimento a primeira referência concreta a filme, após as digressões teóricas partindo de Bergson, é o encontro com o cinema de Wim Wenders, onde “a câmera surgiria, então, como um transdutor, ou melhor, como um equivalente generalizado dos movimentos de translação.” Para entender bem, é preciso pensar, especialmente, nos filmes de Wenders realizados até a data da publicação do livro de Deleuze, Com o passar do tempo (anos 70) e O estado das coisas (começo dos anos 80). Faz sentido que se introduza o leitor na adaptação cinematográfica do conceito de imagem-movimento pelo cinema de Wenders, que é o cinema da câmara-movimento, da imagem-cenário em deslocamento, o cinema-viagem de feição metafísica (embora Deleuze prefira outro alemão, Werner Herzog, como “o mais metafísico dos autores de cinema”).
Com todo francês culto, Deleuze é um obcecado das ideias. Mas em determinado momento conclui que não devemos mitificá-las. Ao aludir ao cinema de Alfred Hitchcock, por exemplo. Lembra que talvez Éric Rohmer e Claude Chabrol, franceses na tendência de Deleuze (obsessão duma ideia, dum conceito), estejam fora de tom ao atribuir a Hitch algo como um pensador, embora tampouco Hitch seja um mero entretenimento, vazio, desprovido.
Complexo, como pensador e como ser, Deleuze oferece-nos seu diálogo agudo sobre cinema. Numa entrevista o filósofo francês fala da amizade, do interesse que se possa ter por alguém e não por outra pessoa, sem que isto conte com a chamada comunhão de ideias, pode-se até discordar amplamente de alguém e ser atraído por este indivíduo; Deleuze usa a palavra “charme”, que contém um grau de mistério e abstração. Deleuze diz, em sua voz fraca e envelhecida: “Il y a des phrases qui peuvent être dites si la personne qui les dit est vulgaire” (“Há frases que podem ser ditas se a pessoa que as diz é vulgar”). É um pouco a característica objetiva-subjetiva de todas as coisas; e, entre as coisas, as imagens.
Em Cinema 1 — A imagem-movimento Deleuze oferece seu sangue de pensador. Como Nietzsche. Aprofunda. Agudiza. O contato com os filmes que ele evoca enriquece o diálogo com o autor do livro e com os filmes repassados na memória. No entanto, mesmo sem o conhecimento cinematográfico, havendo o conhecimento da filosofia, é possível dialogar com o “charme” de Cinema 1 — A imagem-movimento.
Em quatro de novembro de 1995, bastante doente, sem poder fazer as coisas para as quais fora preparado (escrever livros, dar aulas, proferir palestras), Deleuze decidiu atirar-se do apartamento em que morava, em Paris. É coerente: apesar de trágico. E assemelha-se ao que fez o romancista português Camilo Castelo Branco no século XIX: cego, ao sair do consultório oftalmológico em que o médico diagnosticara que dificilmente ele voltaria a enxergar, acompanhado de sua esposa, Camilo deu cabo de sua vida. Entre Camilo e Deleuze, dois cérebros que não aceitaram as transformações radicais que o tempo impôs a seus corpos. No final do livro aqui analisado Deleuze faz o apontamento da possível tendência da imagem-movimento, que “seria apenas a condição negativa para o surgimento da nova imagem pensante, mesmo que fosse preciso buscá-la para além do movimento.” Talvez algo como a imagem-cinema, um fulgor de luz próximo de alguns antigos filmes do grego Theo Angelopoulos, cuja obra não participa das meditações do ensaio de Deleuze, sendo somente um círculo de conceitos e visões que acodem a este comentário.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br