Libelo Antipolicia de Burlan

A estudada e noturna fotografia de Andre S. Brandao capta, desde a primeira imagem de A Mae (2022), o novo filme dirigido por Cristiano Burlan, os aspectos mais ameacadores e sombrios da grande metropole paulistana

08/07/2023 04:32 Por Eron Duarte Fagundes
Libelo Antipolicia de Burlan

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A estudada e noturna fotografia de André S. Brandão capta, desde a primeira imagem de A mãe (2022), o novo filme dirigido por Cristiano Burlan, os aspectos mais ameaçadores e sombrios da grande metrópole paulistana. É um enquadramento aéreo, em plano fixo, da cidade de São Paulo, à noite, com o trânsito de veículos escoando-se lentamente lá embaixo. No corte seguinte, a câmara desloca-se por umas grades que identificam um viaduto de onde a objetiva permite ao espectador perceber o ponto-de-vista de onde a cidade está sendo vista; e logo um longo e tenso travelling lateral acompanha a corrida duma mulher junto das grades, esta mulher será a personagem central, a dita “mãe” do título, o cultor do cinema brasileiro logo identifica a atriz paraibana Marcélia Cartaxo, com sua interpretação desglamurizada característica e que, descobriremos ao longo do filme, tem mais um de seus desempenhos extraordinários de marcações cênicas profundamente originais. A mãe navega entre o rigor estético-ético-formal de Burlan e a constante beleza da atuação de Marcélia.

Inevitavelmente, a história duma mãe suburbana massacrada pela violência policial nas periferias, é extraída pelo cineasta da figura de sua própria mãe, cuja morte trágica o realizador evocou em seu trabalho anterior, Elegia de um crime (2018). Em A mãe, trata-se duma mãe, Maria, símbolo de tantas Marias suburbanas brasileiras, que perde seu filho, desaparecido durante uma abordagem policial cujo desfecho é um assassinato para o qual a violência institucionalizada do Estado faz vistas grossas. É uma peregrinação desta mãe, primeiro no colégio onde o rapaz estudava (vemos a placa do nome do colégio, ironicamente chamava-se Escola Paulo Freire), depois no Instituto Médico Legal, enfim na delegacia. Confirmada a perda e o descaso da polícia, Maria vai ter aos movimentos de mulheres que, como ela, perderam seus filhos para a morte. Ali encontra uma velha mãe (Helena Ignêz, uma espécie de participação afetiva no filme de Burlan), que teve seu filho morto em 1975 pela ditadura militar. Esta personagem a conduz a uma outra mãe, Débora Maria da Silva, que vive a si mesma como a fundadora do Movimento Mães de Maio, homenagem às mães da Praça de Mayo na Argentina. É Débora quem diz à Maria/Marcélia que a ditadura nunca acabou, que ela só vai acabar quando acabarmos com a Polícia Militar. Neste diálogo entre Débora e Maria as emoções e os significados ultrapassam as personagens na ação para chegar aos intérpretes: Débora como ela mesma, Marcélia como Maria. Foi Marcélia quem disse que da conversa com Débora se sentiu como se a criadora do Movimento Mães de Maios a estivesse convocando para a luta.

A naturalidade de toda encenação (cenários cotidianos, gestos cotidianos) topa na direção de Burlan uma correspondência cinematográfica plena, capaz de fazer com que este natural libelo antipolícia atinja a mesma nervura estética de Fome (2015), uma construção ficcional da persona do crítico Jean-Claude Bernardet, e de seu ensaio metalinguístico de Shakespeare em Hamlet (2014), onde também a atitude interpretativa de Bernardet é utilizada em termos de linguagem cinematográfica pelo diretor. Em A mãe as evoluções de estética fílmica estão em vários pontos, mas todas partem da presença física de Marcélia, um dos achados de nosso cinema que tornam, a este achado, exclusivamente brasileiro.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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