Estamos na Chuva
Uma Abelha na Chuva poe diante das cameras criaturas que parecem mesmo roubadas a um conto antigo
Fernando Lopes (1935-2012) é um dos mais estimados cineastas portugueses, um dos criadores do Cinema Novo luso, que, a exemplo de seus outros pares europeus (na França, na Alemanha, , na Inglaterra, na Tchecoslováquia), buscava novas formas de linguagem que correspondessem à ética, à estética, às ideias e ao comportamento do ser humano que aflorava no mundo na década de 60 do século passado. Uma identidade entre os diversos cinemas europeus que se desenvolviam na época: as características intelectuais, o existencialismo que nascia literariamente e os sombrios vagos e divagantes. Com Uma abelha na chuva (1971) Lopes estendia um braço tardio de algumas vertentes de narrativa fílmica que na década anterior se desenvolveram: A noite (1960), do italiano Michelangelo Antonioni; O silêncio (1963), do sueco Ingmar Bergman; Masculino-feminino (1966), do francês (ou franco-suíço) Jean-Luc Godard.
Naturalmente, Uma abelha na chuva não tem uma amarração intransponível com seus modelos. O filme de Fernando Lopes vai mais além: põe o pé nos anos 70 e traz meditações em torno do metaforismo político que se aparta dos aspectos de puro vazio existencial que antes havia em obras como a do brasileiro Walter Hugo Khouri, Noite vazia (1964). Extraído dum romance do português Carlos de Oliveira (também desconhecido ou pouco conhecido no Brasil), filmado em planos de absoluta tensão plástica que captam com senso de precisão a melancolia interna de suas personagens, Uma abelha na chuva põe diante das câmaras criaturas que parecem mesmo roubadas a um conto antigo, como Maria dos Prazeres, Álvaro Silvestre, Jacinto e a trágica Sara, ressaltando-se especialmente os desempenhos sobressalentes de Laura Soveral (como Maria dos Prazeres) e João Guedes (na pele de Álvaro), havendo também destaque para as sorumbáticas expressões em primeiro plano de Zita Duarte (que vive Clara, a “abelha” que sucumbe na chuva dos dias).
Fernando Lopes vale-se do fundo teatral do cinema para incrementar o rigor de sua linguagem cinematográfica. A Companhia de Teatro Desmontável de Rafael de Oliveira encena um trecho da obra-prima literária Amor de perdição (1862), do lusitano Camilo Castelo Branco, romance aliás já filmado pelo mais ilustre dos realizadores portugueses, Manoel de Oliveira. Esta interiorização do teatro no fundo do cinema ajuda a compor esta obsessão de Lopes pelos arcaísmos cuja modernidade é dada pela montagem.
Em seu trabalho mais citado, o semidocumentário Belarmino (1964), o diretor mostrava sua afeição pelo realismo crítico de filmar, cuja inspiração vem certamente do neorrealismo italiano. Indo mais além, Lopes adiciona a esta visão do cinema certas inquietações transcendentais ou metafísicas em Uma abelha na chuva, remontando, de maneira longínqua, às metamorfoses na filmografia do italiano Roberto Rossellini.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br