Allen a Sombra dos Grandes Mestres?
Estamos diante dum prato cheio para invadir as horas com uma pergunta esteril: estara Allen a sombra dos grandes mestres?
Woody Allen é um mestre do cinema. O que desde sempre se discutiu diante dum filme dele é se Allen seria tão grande quanto os mestres europeus que ele admira e refaz constantemente, especialmente o sueco Ingmar Bergman e o italiano Federico Fellini. Com O festival do amor (Rifkin’s festival; 2020) o cineasta alimenta o gosto dos espectadores por estas discussões: montagem original de citações ou encenações copiadas pela ausência de histórias ou ideias originais? Creio que Allen se diverte com isto; só o amor às questões estéticas do cinema ou da arte pode justificar este divertimento intelectual, um autêntico rosário de imagens pelo universo cinematográfico tal como o realizador o observa. O festival do amor pode ser também visto como um ensaio, ou autoensaio, fílmico de Allen: pôr em xeque, a esta altura de sua vida, o processo de filmar que se altera um pouco em cada quadra mas retém uma essência que identifica o artista Allen, de Memórias (1980), uma retrospectiva de um homem de cinema mais evidente, até os signos mais curiosos desta visita a si mesmo, disfarçada, irônica, que é O festival do amor.
No novo filme de Allen a citação (cinematográfica principalmente, mas também literária e em algum momento musical) é a personagem mais que central, ou paracentral. A trama é o subterfúgio do que verdadeiramente interessa do diretor: um ex-professor de cinema, atualmente às voltas com escrever um romance, viaja com sua mulher para ver o Festival de Cinema de San Sebastián, na Espanha; com o casamento no limbo, Mort Rifkin (o homem) e Sue (a mulher) desembarcam em San Sebastián, e ela logo se envolve com um diretor francês arrivista (Philippe) e então Rifkin, contraponteando, se engalfinha com uma médica espanhola. O sentimentalismo da trama de Allen, as convenções desta trama pouco importam: Allen se vale da trivialidade de seu conto para produzir o que mais ama, referências culturais, sobretudo cinematográficas. São vários os filmes clássicos que pontuam O festival do amor como personagens. Alguns Allen faz com que apareçam em suas próprias imagens imortalizadas pela história do cinema e disponíveis em cinematecas do mundo: vemos na montagem do filme de Allen cenas diretas de Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, e Jules e Jim (1961), de François Truffaut. Em outros instantes Allen prefere reencenar sequências destes filmes e de outros com seus atores, fazendo suas divertidas paródias ou releituras cinematográficas. Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, por exemplo, é refeito por Allen na imagem dum trenó de infância de Rifkin e numa cena em que a personagem no filme de Alllen deixa escapar um objeto de cristal (que se espatifa no chão) quando sua mão se contrai de dor. E vem mais: Persona (1966), de Bergman, uma imitação perfeita de certos primeiros planos introspectivos de mulheres, e novamente Bergman, um jantar exposto em cenário e iluminação à maneira de Sorrisos de uma noite de amor (1955), e então, ao desfecho deste jantar, a situação inusitada trazida como evocação de O anjo exterminador (1962), do espanhol Luis Buñuel. E Federico Fellini reconstituído em sequências próximas do visual estranho e transbordante de Oito e meio (1963), uma alegoria metafísica. Ainda de Bergman temos O sétimo selo (1957), reencenado com Rifkin jogando xadrez com a morte (Christoph Waltz compõe a adequada imagem da morte). O rigor das interpretações é um dado de O festival do amor. Wallace Shawn refaz em cena a própria persona de Allen, já que ele andou por outros filmes do cineasta, e esta relação Allen-Shawn é outra paródia. Gina Gershon também se adapta a este universo, assim como a espanhola Elena Anaya. Mais curioso é o desempenho do francês Louis Garrel como um diretor festivaleiro entre o comercial cínico e o comercial afetado. É dele que se enamora a personagem de Gina, enfarada do intelectualismo da criatura de Shawn.
Estamos diante dum prato cheio para invadir as horas com uma pergunta estéril: estará Allen à sombra dos grandes mestres?
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br