A Suma Estetica de Carlos Gerbase
Gerbase nunca engessa o ato de escrever e nos tons desabusados nunca escorrega para a perda do controle narrativo ou a vulgaridade
Antes de tudo, Carlos Gerbase é um diretor de cinema. Lida com a imagem. Lida com atores. Ilumina as telas com suas realizações cinematográficas. É um dos principais representantes duma geração de artistas e cinéfilos no Rio Grande do Sul, aquela geração que descobria o mundo e a arte na década de 80 do século passado. Mas Gerbase é também um cultor das palavras: escreve, é um leitor atento. Seus filmes partem das estruturas de roteiros que alternam o rigor da construção narrativa e a espontaneidade da linguagem verbal.
Seu romance O caderno dos sonhos de Hugo Drummond (2021) tem a atmosfera duma suma dos postulados estéticos que os espectadores dos filmes de Gerbase conhecem bem. A alma do cineasta Gerbase é observada, com curioso distanciamento e calculadas ironias, pelo ficcionista que escreve O caderno dos sonhos de Hugo Drummond. Como em seus filmes, Gerbase é, em seu romance, ora rigoroso na forma, ora desabusado no estilo com que alinha suas orações; no rigor Gerbase nunca engessa o ato de escrever e nos tons desabusados nunca escorrega para a perda do controle narrativo ou a vulgaridade. A contemporaneidade duma obra como O caderno dos sonhos de Hugo Drummond é um dado que, lentamente, vai surpreender o leitor que lá pelas tantas se volta para uma escrita precisa, enxuta e que traz nas superfícies da trama sua densidade.
Desde o início, desde aquele parágrafo que descreve com brilho uma cena na passarela da rodoviária da cidade, o narrador põe o leitor em contato direto com o cinema: Hugo Drummond, a personagem central, é cineasta; ele faz de seus sonhos a matéria de seus roteiros que serão filmes, e evoca a Federico Fellini, como paradigma. Mas, no correr da história, referências a Quadrilha de sádicos (1977), filme do americano Wes Craven, amado por Hugo e por outra personagem, um francês; a obra-prima de Craven, contraposta a Fellini, permite pensar que os modelos de sonhos do cinema são variados. No primeiro movimento narrativo, Hugo desembarca na rodoviária da capital. “Viera para um promissor encontro com produtores cinematográficos.” O que se vai acompanhar no romance é a vida de Hugo —no mundo do cinema, e também fora deste mundo, com a mulher com quem casou, ligada a cinema como ele, com outras mulheres e homens do meio— mas igualmente seus subterrâneos de um indivíduo que faz cinema a partir de suas nebulosas noturnas, os sonhos, estas imagens à noite de nossas mentes.
Na sua maior parte, a narrativa se dá na clássica terceira pessoa onisciente — ainda que feita, aqui, dentro duma modernidade, da subjetividade da personagem, mimetizando um pouco esta primeira pessoa narradora. A primeira pessoa surge mesmo em alguns capítulos intersticiais, onde a palavra é dada a Hugo, a personagem em primeira pessoa que se põe a contar fatos e impressões — mais impressões, pois seriam os tais cadernos de sonhos de Hugo, matéria-prima dos filmes que surgem como pontos de personagem dentro do romance. O cinema, em O caderno dos sonhos de Hugo Drummond, não deixa de ser uma personagem, uma criação de Carlos Gerbase, no sentido duma instância narradora-Gerbase. Em boa parte o romance ilumina o cinema de seu criador, e também edifica uma imagem de cinema dentro da literatura.
Há alusões sarcásticas às badalações frugais em torno dos festivais de cinema, onde muitas vezes o que acaba interessando menos é o cinema. Há a crítica que se faz a Hugo em torno de cenas fetichistas de sexo entre mulheres (o caso do sexo no cinema nas gerações dos anos 60 aos 80 é um dado que contrabalança entre observações moralistas e mudanças na visão social no século XX) que parece uma paródia de certas discussões de fora das telas de cinema ou das páginas de um livro.
Algo, talvez, como um acerto de contas do autor com sua própria vida e obra. Feito, agora, num de seus momentos mais depurados.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br