Gerbase: Scliar e o Cinema

O filme tem algo de antigos filmes em episodios que se vao conectar em algum instante

05/11/2023 13:25 Por Eron Duarte Fagundes
Gerbase: Scliar e o Cinema

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Nas homenagens aos cinquenta anos do romance O exército de um homem só (1973), de Moacyr Scliar, o cineasta Carlos Gerbase fez um filme de cerca de onze minutos, é O exército de um homem só (2023), o filme-homenagem de Gerbase. Foram escolhidas três cenas para dar ideia do teor de relações entre o absurdo e o cotidiano em que habitualmente sempre navegou o texto de Scliar: uma cena de infância entre a personagem do Capitão Birobidjan e sua mãe em que ele, depois de pedir porco para comer, se recusava a comer (no livro a anedota é contada pelo irmão de Birobidjan, algo como uma testemunha narrativa do fato); uma outra em que o pai de Birobidjan vai ao encontro de Sigmund Freud no aeroporto Salgado Filho para expor certos problemas do filho; e uma terceira de Birobidjan com sua esposa Léia, em que discute as questões socialistas de seu zoológico para ela, ao cabo, ser prática, dizendo-lhe que coma o ovo da galinha. Gerbase filma Scliar com senso de cinema; reproduzindo o rigor formal do texto de Scliar, Gerbase vale-se da excelência de seus intérpretes para pôr em prática seus ofícios e sua experiência de diretor de cinema numa homenagem a cuja beleza o espectador se rende.

O filme tem algo de antigos filmes em episódios que se vão conectar em algum instante. Aquilo que no livro é uma narrativa contínua (com o sentido de romancista de Scliar) se transforma no filme em elos que se separam e têm dizeres em si próprios, sem necessariamente uma ligação duma parte com outra, a não ser por um estilo de encenação e por um universo original comum. O exército de um homem só vai, em alguma medida, além de um filme-homenagem ao cinquentenário de um livro para ser um belo excerto de um de nossos mais fortes e constantes cineastas: o cinema de Gerbase, olhando um escritor que admira, está inteiro em O exército de um homem só.

No primeiro episódio, com as dificuldades de Mayer/Birobidjan para comer, vemos a temosia da infância e as instâncias da mãe, ela diz “come” para o menino diante do porco que ele pediu e o qual ele agora se recusa a comer. No episódio final, após as tergiversações em que o Capitão tergiversa sobre o socialismo em seu zoológico, a mulher, servindo o ovo posto pela Companheira Galinha, ordena ao homem: “Come.” Da mãe à esposa, o mesmo verbo, imperativo: “Come.” Entre o porco e ovo. No episódio intermediário, um jogo entre as insistências de um pai e a impaciência-tolerância do famoso Sigmund Freud no Aeroporto Salgado Filho. As três cenas se aproximam e se apartam em igual medida. Num preciso jogo cinematográfico em que o uso dos intérpretes é um dado fundamental da linguagem: como habitual no cinema de Gerbase.

Moacyr Scliar foi também um homem que acompanhava cinema: sabem especialmente disto os que leram suas crônicas de jornal nos anos 70 e 80. O cinema visitou sua literatura algumas vezes. Nelson Nadotti, companheiro de geração de Gerbase, fez o curta-metragem No amor (1983), a partir do conto “O mistério dos hippies desaparecidos”, publicado no jornal Zero Hora por  aqueles anos; este filme curto de Nadotti entrelaçava a literatura de Scliar com o cinema que então fazíamos no sul do país. O paulista André Sturm filmou em 2002 Sonhos tropicais, a partir de um romance de Scliar de 1992 em torno da figura do sanitarista Oswald Cruz; apesar dos tropeços de encenação, Scliar, na época, aprovou o esforço de Sturm. Houve um momento em que os americanos compraram os direitos de filmagem de O centauro no jardim (1980): Scliar então revelava seu temor de que o que interessasse à indústria do cinema fosse o lado fácil e trivial do fantástico e não a complexidade que ele buscava em seus livros. Creio que este risco passa longe da realização de Gerbase: seu O exército de um homem só soube encontrar o absurdo e a fantasia sem afastar-se do teor cotidiano.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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