O Escritor Gerbase, na Ausencia da Camera e do Ator
Antes de mais nada, Todos Morrem no Fim se poe como uma narrativa de genero. O policial. O policial de detetive
Carlos Gerbase é mais conhecido como diretor de cinema. Mas suas inquietações têm andado pelos caminhos da música (baterista e vocalista). E da literatura. Todos morrem no fim (2010) é um de seus romances. Na verdade, Gerbase faz literatura contemporaneamente a seu cinema, desde décadas; seu conto O argonauta foi transformado no clássico do cinema na província Inverno (1983), que ele rodou na bitola Super-8. O cinema de Gerbase sempre teve um pé na literatura, não somente porque partiu de textos literários (Verdes anos, 1984, codirigido por Giba Assis Brasil, já na bitola habitual dos cinemas, 35mm, parte dum conto de Luiz Fernando Emediato), mas ainda porque o diretor-escritor deixa transparecer seu gosto pela palavra com a forma como os diálogos escorrem na tela, entre a naturalidade e a construção mais engenhosa, lembrando certos cineastas franceses que eram vistos e apreciados por aqui nos anos 80. Resta saber se a literatura que deparamos em Todos morrem no fim pode ter algo de cinematográfico, uma edificação literária que apresente, também em parte, o esqueleto para um roteiro cinematográfico.
Antes de mais nada, Todos morrem no fim se põe como uma narrativa de gênero. O policial. O policial de detetive. O inspetor Otávio de Gerbase poderia ser o equivalente entre nós ao Maigret de Georges Simenon ou ao Poirot de Agatha Christie. Ressalvadas as profundas diferenças culturais, étnicas, de experiências sociais e civilizacionais. A literatura de corte policial não é muito cultuada na literatura feita aqui no extremo sul do Brasil. Meus exemplos de cabeceira são Sobra de guerra (1982), de José Onofre, e O caso do martelo (1991), de José Clemente Pozenato, duas novelas enxutas e potentes, instância de que as divagações mais livres e um pouco prolixas do romance de Gerbase se afastam bastante.
A história de Gerbase se abre com a cena de estupro, no estacionamento duma universidade, na cidade de Sapucaia do Sul. Isabel, uma professora, ao dirigir-se para seu carro, é violentada por alguém que ela sequer consegue ver quem é. O narrador descreve minuciosamente os passos de Isabel até topar, quase inconscientemente, com seu agressor sexual: “Está acontecendo um estupro, deduz, ainda sem perceber que a vítima do estupro é ela.”
Um pouco movido porque se vive entre livros e filmes, um pouco por Gerbase sempre levar-nos a pensar em cinema, logo vem à memória dois filmes que têm nas cenas iniciais um estupro. Um deles é francês, Elle (2016), dirigido pelo holandês Paul Verhoeven, a atriz é uma Isabel francesa, a Isabelle Huppert, a personagem estuprada no início do filme, depois estimulada a um processo cerebral de descobrir o criminoso e fazê-lo pagar. O outro é brasileiro, O silêncio do céu (2016), de Marco Dutra, com a personagem de Carolina Dickmann violentada na abertura do filme, e depois seu casamento aos poucos sofrendo os abalos do ocorrido. Todos morrem no fim vai por outros caminhos: sua Isabel entra em coma, entra em ação o inspetor Otávio e suas tergiversações policiais para descobrir quem fez o crime. Sob a aparência dum policial clássico que reitera para o leitor a pergunta (quem é o criminoso?), que Gerbase não se peja de dar a resposta no fim (onde, em princípio, todos morrem, inclusive a pergunta clássica dum policial do gênero), o que Gerbase constrói em seu romance é uma crônica feita de movimentos cotidianos e conversas habituais, como em seus filmes. São muito registros de nossa vida porto-alegrense: os cenários estão ali minuciosos, as personagens, apesar de sua aparência de seres abstratos duma história policial), se assemelham às criaturas que conhecemos por aqui.
Se a vida de Otávio —surpreendida em sua investigação do estupro de Isabel—, movendo-se entre seus afazeres e suas ambíguas relações com a prostituta Neusa, é em boa parte o centro de Todos morrem no fim, há outras paralelas que se cruzam. A história que envolve o tenente-coronel Ribeiro, seu filho Tavinho e sua secretária Verinha num triângulo amoroso esquivo e perigoso e que vai ter ligações com uma vertente (à socapa) política do romance, um sequestro promovido pela polícia política gaúcha para entregar uma subversiva de esquerda à ditadura de direita uruguaia, evocando livremente o caso de Lilian Celiberti e Universindo Diaz que se deu aqui em 1978. O caso de amor erótico entre Tavinho e Verinha rende a Gerbase uma descrição de sexo que traz seu êxtase nas palavras: “Ela sentou outra vez na beira da cama. Atacou o cinto, abriu a fivela, abriu um botão, puxou o zíper. Agarrou a calça pelos dois lados e arrancou-a, tão rápido e com tanta força que suas unhas compridas rasparam fundo a pele sob os ossos da bacia dele. Premeditado ou não, o violento arranhão quebrou o torpor de Tavinho, arremessando-o para a realidade do quarto de hotel e para a umidade do corpo ao seu lado.” Dentro da proposta central de Todos morrem no fim estas minúcias sexuais se destacam pelo diferente; algumas breves cenas de sexo entre Otávio e Neusa têm outro tipo de tratamento, mais tédio e desenfado, menos paixão ou ardor.
Terminada a leitura de Todos morrem no fim, observa-se que este leitor sente falta de alguma coisa. Depois de tantas décadas, de Verdes anos (1984) a Bio (2017), dar com Gerbase sem a câmara e os atores materializa uma estranha falta. A literatura de Gerbase pede algo ao cinema. Lembro uma frase de um companheiro dos anos 80, o santista Renato Pedroso Júnior, que frequentou as hostes cinematográficas de Porto Alegre, ao ver uma encenação teatral de As lágrimas amargas de Petra Von Kant: ‘É interessante; só tem um problema, não é cinema.” Sei que aqui se está sendo vago em relação a uma obra dum artista de que gosto: no entanto, é nestas hesitações que um romance como Todos morrem no fim me deixa, pensar se a câmara, o ator, a fotografia, a montagem dariam mais dinâmica e impulso às tramas entrecruzadas imaginadas por Gerbase.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br