O Questionamento Religioso em Bergman
O último filme feito pelo cineasta sueco Ingmar Bergman na década de 50, A Fonte da Donzela é a suma de suas inquietações religiosas e metafísicas
O último filme feito pelo cineasta sueco Ingmar Bergman na década de 50, A fonte da donzela (Jungfrukallan; 1959), é a suma de suas inquietações religiosas e metafísicas naqueles anos, quando o realizador cruzava a sempre conflituada faixa etária dos quarenta aos cinqüenta; aquele questionamento sobre a divindade que surge na parábola de O sétimo selo (1956) e em alguns diálogos de Morangos silvestres (1957), torna a rabiscar suas metáforas cinematográficas em A fonte da donzela. Num dos filmes da trilogia do silêncio, Luz de inverno (1962), Bergman reacenderia esta sua ingenuidade religiosa, mas modificava um pouco o ponto de vista, acelerando uma visão emocional que apontaria para outros rumos em sua obra a partir de Persona (1966).
A religiosidade bergmaniana da década de 50 pode ter envelhecido um pouco em face do “excessivo ingênuo” do questionamento proposto (algo um tanto escolar aos ouvidos de hoje). A sequência final de A fonte da donzela, quando a personagem de Max von Sydow deblatera para a divindade questionando seus desígnios diante do cadáver ensanguentado e sujo da filha estuprada e assassinada por miseráveis andarilhos do interior da Suécia, é característica desta filosofia da ingenuidade: Bergman e sua personagem ainda creem em Deus, mas demonstram sua fé por um ataque direto a Deus como um passivo assistente da imundícia humana. O francês Robert Bresson, pela mesma época, adotava uma filosofia cinematográfica bastante mais complexa e sinuosa. Todavia, a despeito desta observação que mesmo um bergmaniano fervoroso como este anotador deve fazer meio a contragosto, é notável que estas reflexões ingênuas do cineasta aparecem de maneira cinematograficamente forte e profunda: sua capacidade de imagem é algo assombroso, e só esta capacidade poderia transformar A fonte da donzela em mais uma obra-prima do genial sueco.
A fonte da donzela lida com o grande tema da existência (a existência de Deus) e com alguns subtemas, como a inveja e a violência de sempre. A inveja surge na figura rude e esquiva da criada amorenada, grávida, que vê despertar seu sentimento negativo diante da visão da filha branca e feliz de seu patrão e amante; desejando-lhe o mal, ela se contorce na satisfação de seu desejo e na perplexidade de sua culpa depois que a tragédia do estupro e do assassinato se abate sobre aquela família de fazendeiros religiosos. A violência explode nos marginais que violentam a garota e depois na vingança urdida pelo pai ultrajado. Não há pudores nem meias palavras na história humilhante e terrível que Bergman se propõe contar. Se o questionamento metafísico apela para a ingenuidade referida, há um comportamento místico enviesado das personagens: o ato de purificação do pai, sentindo-se culpado logo depois que descobre que os homens que acolheu em sua casa numa noite do friíssimo inverno sueco são os matadores de sua filha, se flagela com uma surra de galhos nas costas e despejando sobre o corpo água quente; coisas do protestantismo nórdico. O fato de a menina sair de casa para levar à igreja uma oferenda de velas, e aí ocorrer todo o desenlace, dá a Karin, a virgem violada e morta, a instância duma santidade, algo que se reforça naquela imagem derradeira em que, retirado o corpo da filha pelo pai, no mesmo local passa a jorrar água como de uma fonte: é a fonte da donzela.
Bergmanianos de todas as latitudes, sentai-vos e aproveitai mais este instante de genialidade autêntica!
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br