Um Olhar Curvo Para o Mundo

A profundidade estilística do cineasta italiano Michelangelo Antonioni já estava integral em seu primeiro filme, Crimes D?Alma

26/08/2016 22:53 Por Eron Duarte Fagundes
Um Olhar Curvo Para o Mundo

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A profundidade estilística do cineasta italiano Michelangelo Antonioni já estava integral em seu primeiro filme, Crimes d’alma (Cronaca di un amore; 1950), onde ele subverte as regras da investigação policial no cinema. Nos planos iniciais da narrativa, despejando uma série de fotografias sobre a mesa de um detetive, um industrial italiano contrata uma investigação sobre o passado de sua esposa, detendo-se especialmente nas relações dela com a morte duma mulher e a participação nesta morte de um homem cuja ligação com as duas mulheres deve ser esclarecida. Desde logo, o espectador sabe que a esposa do industrial tem um amante e que no passado, por omissão, deixaram uma garota (namorada do homem) morrer em algo que cognominam acidente; aquilo que habitualmente é o alvo do desenvolvimento duma trama policial, descobrir um crime e os criminosos, Antonioni antecipa desde o início, voltando-se, pois, para as motivações interiores e as tensões exasperadas que recobrem as personagens.

As câmaras que se colocam esquivamente nas esquinas ou os movimentos do espaço para captar as caminhadas de suas criaturas, que se exacerbariam em A aventura (1959), A noite (1960) e O eclipse (1961), os autênticos pontos altos de sua estética de filmar, já são precisas e plasticamente desconcertantes em Crimes d’alma; a sofisticada ambientação burguesa do universo de Antonioni (a riqueza do vestuário da personagem de Lucia Bosè e o requintado de seus gestos) e a marcação de cenários executada com rigor duma régua cinematográfica são aprofundadas com o estilo único de Antonioni, tantas vezes imitado porém nunca igualado. A dialética entre os exteriores e os interiores na linguagem de Antonioni iluminam Crimes d’alma, conferindo-lhe uma lucidez formal que se expande para seu tema; as constantes ruas molhadas, as bicicletas circulantes e um plano de Massimo Girotti diante duma vidraça encharcada pela chuva são elementos de melancolia transbordante que Antonioni usa com a impiedade de seu olhar posto numa curva, como habitualmente se posiciona sua câmara em muitos cenários externos.

O crime evocado no início do filme (a namorada acidentada do amante da protagonista) topa seu reflexo no crime do fim do filme, quando Paola e Guido planejam o assassinato do marido de Paola, o industrial, mas este se acidenta de carro, estabelecendo o desejo criminoso dos dois sem a necessidade material do crime. É o crime do espírito dos amantes. E Antonioni tem o rigor cerebral de filmar para, como faria depois em As amigas (1955), conter as sensações melodramáticas de suas criaturas, como se observa na secura com que ele filma, no final, o choro da mulher abandonada pelo amante após o segundo crime d’alma de que participaram.

Lucia Bosè, a estrela de Antonioni neste filme, foi depois Miss Itália. Massimo Girotti foi um galã da época no cinema italiano e antes já interpretara um amante que ajuda a mulher a dar cabo do marido em Obsessão (1942), outro filme inicial de um gênio do cinema italiano, Luchino Visconti. Enfim, uma obra cinematográfica este Crimes d’alma de rara perfeição e profundidade, que anunciava ao mundo em toda a extensão de que era capaz Antonioni, que viria a ser um nome básico do cinema nas décadas seguintes.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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