Um Delirio Metaforico de Saura
Saura filma com intensa plasticidade e profundidade os gestos de suas personagens
A personagem de um homem paralítico, mudo e desmemoriado é o que está no centro de O jardim das delícias (El jardin de las delicias; 1970), mais uma metáfora social da Espanha travestido de acurado drama íntimo que o cineasta Carlos Saura rodou nos anos em que ele mais chamou a atenção da crítica internacional. Talvez seja o mais delirante e extravagante de seus filmes, aquele onde as origens surrealistas do realizador alcançam notas adrede desafinadas e escrachadas. A despeito do rigor formal refinado de que um artista como Saura cerca este universo deprimente e mal comportado.
A paralisia como símbolo da Espanha franquista foi depois usada na figura da matriarca tagarela de Ana e os lobos (1972) e Mamãe faz cem anos (1979) e na avó também paralítica mas calada de Cria cuervos (1976). Mas é em O jardim das delícias que a paralisia assume o instituto da figura de linguagem, dando à situação do indivíduo sob o franquismo todo o seu baixo esplendor. José Luis Lopez Vasques, que depois tornaria a ser visto como o protagonista de outro trabalho de Saura, A prima Angélica (1973), vive com absoluto despudor o milionário sem andar, sem falas, sem memória cujos entes familiares (filhos, mulher e outros) querem saber onde escondeu sua fortuna (num banco suíço, num cofre, afinal onde); o milionário se recusa a fornecer os dados a seus gananciosos parentes.
Saura filma com intensa plasticidade e profundidade os gestos de suas personagens. Seus planos são sempre lentos e elaborados. Há uma depuração extraordinária em cada plano. A utilização de cenários concentrados e isolados é perfeita pelo realizador; os exteriores do campo e os interiores inteligentemente burgueses casam-se com naturalidade numa montagem ágil e musical (os filmes de Saura daquela época parecem-se com uma música de câmara —uma missa de Bach por exemplo, dolente e poderosa em suas notas).
Filmar a paralisia é a transcendência de O jardim das delícias. O curioso é que o paralítico, em seus delírios e lembranças (o que significa a maior parte da narrativa), anda e até fala, muitas vezes discursa em reuniões da empresa; os joguetes a que os submetem os espertalhões são observados com sarcasmo pelo narrador cinematográfico, fazendo com que aqui e ali seja açulada a imaginação da personagem e a criatura mergulha em evocações autenticamente medievais, perplexas mesmo. Como a paralisia é o signo central da narrativa, a sequência final mostra todas as personagens em cadeiras de rodas, andando de cá para lá ao sabor dos planos, numa deslumbrante montagem entrecruzada; assim, Saura fecha seu filme, lembrando que as amarras que o franquismo colocou nas pessoas atingiu a espinha do corpo social: paralisou-as, sem exceção.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br