Um Rigor Literário no Cinema Alemão
A estranheza dos diálogos e da lentidão narrativa é um dado de profundidade existencial em A Mulher Canhota
O austríaco Peter Handke é um romancista: isto é, um homem de palavras. Seu romance O medo do goleiro diante do pênalti (1970) gerou um dos primeiros filmes do alemão Wim Wenders, em 1971; Handke foi corroteirista de Wenders neste filme. Ao transformar as palavras escritas em imagens e sons em A mulher canhota (Die Linkshändige; 1978), Handke permaneceu fiel a um rigor literário na composição estética do filme em que quadros fixos e lentos e reflexões filosófico-verbais ditam o ritmo e suas complexidades mas ao mesmo tempo se inseriu numa proposta de linguagem autenticamente cinematográfica, sem ranços ou desajeitado pedantismo. A plasticidade geral do fluxo fílmico na captação duma interioridade visual (o parente remoto é o italiano Michelangelo Antonioni) é o mais das vezes deslumbrante.
Estabelecendo inovações de pontos-de-vista na relação do casal do século XX em plena da década de 70, Handke filma uma mulher e um homem em crise testemunhada pelo filho do casal; o cenário é Paris e seus subterfúgios intelectuais e sombrios, mas trilhando observações e textos diversos daqueles que a internacionalização de filmar do italiano Bernardo Bertolucci impôs em O último tango em Paris (1972). O germanismo obscuro e denso, aquele mesmo que Alexander Kluge revolucionaria em seus filmes, atravessa as imagens de A mulher canhota.
A estranheza dos diálogos e da lentidão narrativa é um dado de profundidade existencial em A mulher canhota. Produzida pela empresa de Wim Wenders, esta obra-prima conta com um elenco que corresponde a seu clima soturno. Bruno Ganz e Edith Clever estão no primeiro plano (ambos foram vistos juntos em A marquesa de O, 1976, de Eric Rohmer). E Angela Winkler, a atriz de O tambor (1979), do alemão Volker Schlöndorff, preenche com volúpia os enquadramentos. E, em breves aparições, o veterano Bernhard Wicki (diretor alemão cujo principal trabalho como intérprete foi no papel do amigo doente, no hospital, no início do filme, do casal de A noite, 1960, de Michelangelo Antonioni), o alemão Rüdiger Vogler (astro-fetiche de certa fase de Wenders) e o francês Gerard Depardieu (para melhor colorir o elemento francês do filme).
Fiel à sua paixão literária, Handke faz da personagem de Edith, Marianne, uma tradutora do francês para o alemão; seu pai, um editor, lhe dá para traduzir Um coração simples, novela do francês Gustave Flaubert, pedindo que ela converta o texto do historiador latino de Flaubert em repórter de atualidade. A tradução alemã de Marianne do texto de Flaubert preenche uma parte das mais belas inquietações do filme de Handke.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br