A Formação de um Intelectual

josé Geraldo Vieira foi um escritor que nunca teve medo de enfrentar sua ferramenta, a palavra escrita

06/06/2014 17:33 Por Eron Fagundes
A Formação de um Intelectual

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José Geraldo Vieira, um carioca de origem açoriana, é um romancista que usou a criatividade do verbo como elemento de construção narrativa e dramática; nunca como em José Geraldo a literatura foi acima de tudo palavra e metáfora mexendo-se dentro da palavra. Ele foi um escritor que nunca teve medo de enfrentar sua ferramenta, a palavra escrita.

Terreno baldio (1961), assim como outros livros de José Geraldo, tem muitas coisas da própria vida do romancista. E no caso agora trata-se de um espelho estético. Em seu romance José Geraldo vai acompanhar (narrativa em primeira pessoa, José Geraldo escondendo-se no disfarce da arte) a formação de um intelectual, desde menino. Os primeiros tempos na geografia carioca logo são sobressaltados pela mudança para a Europa, para a França. “Recebi uma carta de tio Francisco escrita pela fonética açoreana”, anota o narrador, que logo em seguida  descreve o tumulto de seu embarque para o Velho Mundo. “Certa manhã entraram pelo portão da chácara uns carregadores bigodudos empurrando três carrinhos de ferro. Pararam na varanda, a copeira serviu-lhes vinho, o jardineiro e o chacareiro ajudaram-nos a transportar uma porção de malas”. A lancha partiu do cais “alvoroçando o meu frenesi”. A partir daí o périplo de João Paulo (a personagem que é a máscara de José Geraldo) terá seu aprendizado europeu, a guerra, a morte da amante num acidente de guerra, o universo cultural parisiense. O Rio ficou para trás. “Adeus... aristocratas de Botafogo, lindas mulheres das laranjeiras”.

João Paulo, o homem que vaga internacionalmente, escultor, pretendente a escritor é o depósito de confissões, por meio da literatura, de José Geraldo. Sempre se escreveu que o texto de José Geraldo se alienava de seu tempo, que sua linguagem era fuga, que seu espiritualismo se afastava dos problemas de sua época. Terreno baldio, percorrendo a formação de um intelectual no século XX (João Paulo é José Geraldo, creia-se), é um romance incrustado em seu tempo. É o romance dos primeiros e tumultuados anos do século XX. As operações bélicas estão ali. A efervescência parisiense está ali. Com naturalidade, a personagem topa seres históricos. "No café encontrei Picasso junto com Dora Maar.” Nesta frase é um pouco como se José Geraldo falasse de si mesmo diretamente: vi certa vez Picasso e Dora num café de Paris, poderia dizer José Geraldo.

Mais adiante, ao voltar para seu Rio de origem, a personagem não perde o cenário parisiense, oscilando entre estas duas cidades, que, numa crônica, o escritor gaúcho Juremir Machado da Silva (outro eterno exilado de Paris e em Paris) cognominou as mais belas do mundo. A memória de palavras do narrador acaba misturando tudo, Rio e Paris. “Às vezes perdia a consciência do local, e se parecia estar andando pela rue Castiglione, subindo a rue des Pyramides, marginando as vitrinas fechadas da rue de Rivoli, atravessando a praça Vendôme. E quando me vi de novo na avenida, era como se descesse para um bulevar vazio e noturno. Instintivamente se encaminhava para a avenida Getúlio Vargas.” E a perplexa confusão se estabelece na história da personagem cruzando seu tempo presente: “Por onde vamos? Pela avenida Getúlio Vargas? Pelo Champs-Elysées? Aquilo lá ao fundo não é o arco da Étoile? Não, absolutamente, seu João Paulo. Aquilo acolá, opaco, sem vão no meio, é a Candelária.”

A respiração de um romancista como José Geraldo Vieira se expande para todos os lados do globo ecoando as densidades da língua portuguesa como nunca ninguém fez antes e depois dele.

“Ao rematar este livro na antevéspera de mais um Natal, estou no meu quarto, ao rés das amendoeiras, na residência de Iseu. É manhã de sol e calor. Não me rendo à tentação fugaz de enfileirar hipóteses sobre o que me aguardará como quinhão de perplexidades nesse ano que já se anuncia em sambas nas favelas da Lagoa. Ouço a criançada voltar da praia em duas turmas insofridas. Entre as várias risadas distingo a de Jorjinho porque tem timbre diverso, que paradoxalmente me lembra os soluços da mãe de Maria naquela tarde longínqua, espécie de eco das pancadas do Destino batendo na porta, os acordes da célebre sinfonia.”

Penso que, para José Geraldo, é como se a língua portuguesa fosse mesmo um terreno baldio onde ele pode edificar o que quiser: sem escritura ou leis municipais.

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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