A Natureza Gongórica Brasileira

Ariano Suassuna faleceu no último dia 23 de julho, aos 87 anos, como se deve saber, uma boa idade para morrer.

25/07/2014 10:45 Da Redação
A Natureza Gongórica Brasileira

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A Natureza Gongórica Brasileira

 

 

Prólogo: Depois do necrológio de João Ubaldo Ribeiro, eis minha nova oração fúnebre, mais uma vez para um escritor do Nordeste. Ariano Suassuna faleceu no último dia 23 de julho, aos 87 anos, como se deve saber, uma boa idade para morrer. Mas nosso desejo de eternidade nunca aceita este adjetivo “boa”. Vamos, então, às letras, que podem eternizar um indivíduo. No caso de Ariano, que também escreveu teatro e poesia, seu romance A pedra do reino é o que deve melhor sobreviver à passagem dos anos.

 

 

O paraibano Ariano Suassuna faz o romance do gongorismo brasileiro em Romance d’a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta (1971), apelidado pela economia verbal de nossa época A pedra do reino. É um livrão (mais de setecentas páginas) que exige do leitor o gosto literário mesmo, o amor ao texto, se não não haverá paciência que agüente seus rompantes barrocos no interior do sertão; mas se o observador vencer a resistência da extensão e da linguagem, vai descobrir nos tesouros arcaicos de Suassuna uma grande capacidade de inventar histórias e maravilhas, é o “mil e uma noites” do nordeste brasileiro, às vezes parece que a Idade Média (de reis e genealogias heróicas e nobres) baixou na literatura brasileira que na modernidade do século XX foi dominada pelo realismo social ditado pelos romances (também nordestinos) da década de 30, com o alagoano Graciliano Ramos à frente. A pedra do reino não é tão difícil lingüisticamente quanto Grande sertão: veredas (1956), do mineiro João Guimarães Rosa, mas suas metáforas vibrantes contam tanto as histórias inventadas quanto a trama mesmo destas histórias: a fabulação de Suassuna já está na linguagem, que exubera e exagera a todo o momento. A pedra do reino se diverte com os episódios extraídos de ouvido das narrativas de cordel (Suassuna, como bom romancista, é um observador e ouvinte atento das coisas do povo), mas está longe da comunicação mais transparente e fácil do baiano João Ubaldo Ribeiro em Viva o povo brasileiro (1984). Rachel de Queiroz, escritora cearense, esforçando-se por distinguir Suassuna de Guimarães Rosa, diz que a língua de Suassuna sempre existiu junto ao povo, enquanto a de Rosa é de laboratório; entendo o que ela quer dizer, mas tudo o que se põe assim meio esquematicamente num texto crítico, padece da ausência de dinâmica da realidade, no caso a dinâmica de duas realidades textuais brasileiras: há tanto em Suassuna quanto em Rosa estas pulsões entre a realidade ouvida (a língua do povo) e a realidade reconstruída (a língua do escritor), Suassuna não se afasta tanto quanto Rosa de suas fontes ao debruçar-se no papel mas a língua que Suassuna maneja é tão de imaginação quanto a de Rosa, tão delirante quanto as loucuras populares reconstituídas.

Mas não se pense que um escritor, qualquer escritor, se inspire unicamente no povo para fazer sua literatura. Sombras literárias artificializam sua construção. A capacidade de pulsação deste artifício vai depender da energia do romancista, o que Suassuna tem sobrante, como se depreende de suas páginas, ricas de achados a cada curva. Para os que não curtem o barroco, os achados são demais: pleonasmos. Como muitas vezes Suassuna evita as metamorfoses rosianas e deixa o lugar-comum da grandiloqüência brasileira rolar docemente, um leitor moderno pode aqui e ali incomodar-se. Mas o conjunto é soberbo.

Dizia: não se pense que Suassuna só ouviu a voz do povo. Ouviu as vozes de suas leituras. Parece que a principal influência literária de Suassuna foi mesmo o ficcionista cearense José de Alencar. Este pioneiro de nossa literatura é hoje um problema para os analistas e leitores. Há alguns anos, o escritor gaúcho Juremir Machado da Silva, em uma crônica, Instruções para eliminar leitores (Correio do Povo de 12.11.2006), acusava Alencar de culpado pelo desprestígio da literatura brasileira junto ao público nacional. “Digo e repito: a culpa não é da televisão. Mas do José de Alencar. Só que ele não está sozinho. Nunca esteve. Ele tem muitos cúmplices. Cada um mais maléfico que o outro. Vou denunciar agora toda a quadrilha. Tenho provas. Trata-se de um bando perigoso que ataca os adolescentes, levando-os a ter pavor de livros.” Mas a virulenta ojeriza de Juremir para com Alencar é coisa contemporânea, algo bastante fácil de aceitar neste século XXI. No entanto, pesquisando estudiosos  ainda hoje levados a sério, podemos encontrar ambíguas e não constrangidas defesas de Alencar, um inevitável ícone de nossas letras, como Machado de Assis e Jorge Amado. Antônio Cândido, em Formação da Literatura Brasileira (1957), anota: “Esta força de Alencar —o único escritor de nossa literatura a criar um mito heróico, o Peri— tornou-o suspeito ao gosto de nosso século. Não será de fato escritor para a cabeceira, nem para absorver uma vocação de leitor; mas não aceitar este seu lado épico, não ter vibrado com ele, é prova de imaginação pedestre ou ressecamento de tudo o que em nós, mesmo adultos, permanece verde e flexível.” O ficcionista mineiro Autran Dourado, em seu ensaio Uma poética do romance (1976), ao evocar o texto-depoimento de Alencar Como e por que sou romancista, vai mais longe em sua defesa: “Era lúcido Alencar, defendia abertamente as suas concepções linguísticas, dava as chaves para a compreensão de sua obra, avançada para o Brasil do seu tempo.” Como explicar que escritores modernos, donos de textos precisos e rigorosos como Dourado e Cândido, valorizem aquelas metáforas fora de moda de que um cronista como Juremir zomba asperamente? Curiosamente, especialmente em seus textos mais antigos, menos preocupados com uma comunicação mais linear com o leitor, Juremir é um escritor de metáforas; claro, metáforas que estão mais para a complexidade do francês Charles Beaudelaire ou do brasileiro José Geraldo Vieira do que para os arroubos ingênuos de Alencar. Em A pedra do reino o protagonista, Dom Pedro Dinis Quaderna, o homem que narra as patranhas sertanejas semi-heróicas (ressuscitar o mito heróico de Peri?) escreve: “E, mais do que tudo, contra o culto que meu pai tinha a José de Alencar e que passara a mim: eu, tendo lido, aos quinze anos, os heroísmos e cavalarias de Peri e Arnaldo Louredo, assim como as safadezas de alcova de Lucíola, fiquei fascinado e me tornei, também, devoto do autor de O sertanejo, a quem Clemente e Samuel consideravam um ‘autor de segunda ordem’.” Ao longo do romance de Suassuna, vários encômios a Alencar surgem; estes encômios se travestem de dizeres da personagem, mas á a voz do romancista que ali se disfarça. A prosa alencariana faz das suas ao longo de A pedra do reino, como se vê lendo o livro. É claro que tudo é devidamente modernizado para se adaptar às exigências do tempo de hoje. Alencar pode ser de segunda ordem, pode ser até desprezível como quer Juremir (como suportar serenamente sua idealização romântica por mais de cinco monótonas páginas?!), mas sua influência sobre um escritor tão importante como Suassuna é inegável e fecunda. A pedra do reino nasce de Alencar mas o transcende. E mistura Alencar, mil e uma noites no sertão com os delírios do cineasta Glauber Rocha, dialogando aí com o cinema, diálogo que se exacerba na versão audiovisual que o diretor Luiz Fernando Carvalho rodou com intensa criatividade em 2007, primeiro para a televisão, depois lançado nos cinemas, mas com o inevitável fracasso de público e a incompreensão dos apressados.

“Daqui de cima, no pavimento superior, pela janela gradeada da Cadeia onde estou preso, vejo os arredores de nossa indomável Vila Sertaneja. O sol treme na vista, reluzindo nas pedras mais próximas. Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo Sol esbraseado, parece desprender-se um sopro ardente, que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens.”

Este início “escumando” (e babando) de A pedra do reino contrasta com outro início de romance no sertão, o de Vila dos confins (1956), do mineiro Mário Palmério, cujo tom das despojadas frases é de propósito monocórdio, para captar a monotonia do sol a pino: “Sol já meio de esguelha, sol das três horas. A areia, um borralho de quente. A caatinga, um mundo perdido. Tudo, tudo parado: parado e morto.” A reiterativa de Palmério é substituída pelas exaltadas imagens de Suassuna. Alencariano? Um problema da exacerbação da retórica brasileira, edificada também por outro indivíduo constantemente revisado e destroçado: o baiano Ruy Barbosa. Haverá alguém mais aí que, como Juremir, se preocupe com o crime contra os leitores mais jovens? Ou no fundo a existência da literatura já é um crime contra o leitor?

A maior parte de A pedra do reino é uma reminiscência da personagem em seu depoimento no Tribunal diante do Juiz-Coerregedor. É um pouco um romance de Tribunal onde o fio narrativo é o depoimento do acusado, o narrador do livro. Seu depoimento, como ele mesmo alude a certa altura, é a um só tempo um serviço à Justiça e um serviço à Literatura. Se João Ubaldo utiliza o feitio das crônicas quinhentistas para seus romances (novamente velhas leituras ajudam na modernidade de um autor —João Ubaldo atualiza Vieira, Bernardes, Fernão Lopes), Suassuna parte direto para o maravilhoso de transplantes medievais (como se Alencar fosse capaz de compor nossas mil e uma noite sertanejas). Enfim, um romance soberbo, que exige do observador todo o seu cérebro: dialoga com o cinema e a televisão, mas é a mais alta literatura do século XX.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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