A Plasticidade de Filmar em Oshima

Furyo, em Nome da Honra vai semeando uma reflexao sobre a natureza das guerras

10/04/2023 14:14 Por Eron Duarte Fagundes
A Plasticidade de Filmar em Oshima

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Cada movimento de câmara (aproximação, afastamento ou deslocamento), cada enquadramento ou angulação ou disposição das figuras em cena, cada corte ou tensão na montagem audiovisual num filme do japonês Nagisa Oshima obedece aos sintagmas únicos de sua plasticidade cinematográfica. É o que se plasma em Furyo, em nome da honra (Merry Christmas, Mr. Lawrence; 1983), narrativa dotada de um senso do cinema que ainda hoje parece avançado demais para o que se vê habitualmente; se era moderno em sua linguagem cinematográfica na década de 80, permanece numa espécie de modernidade que continuamos a esperar do cinema, para o futuro.

A base do roteiro de Oshima e Paul Mayesberg são livros autobiográficos do holandês Laurens van der Post, que se referem a experiências do autor como prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial. No filme de Oshima a personagem do holandês é transformada no soldado inglês Lawrence, vivido com desembaraço por Tom Conti. David Bowie, que pela mesma época interpretou o vampiro de Fome de viver (1983), do diretor inglês Tony Scott, empresta à criatura de outro soldado inglês, Jack Celliers, uma androginia cênica amiúde extasiante. As convivências e dissidências étnicas entre nipônicos e britânicos num seio bélico são observadas com rigor estético e crítico pelo cinema muitas vezes clínico e implacável de Oshima, aquele mesmo que conhecemos de seu retrato de antigas gangues japonesas em O túmulo do sol (1960) e também nos planos de sexo de O império dos sentidos (1976) ou nos quadros de fantasmagoria psíquica de O império da paixão (1978). Ao espectador cabe desfrutar esta intensidade de realização de que o cineasta não abdica em cada opção de movimento ou corte com sua câmara.

Musicado de maneira absolutamente transbordante por Ryuichi Sakamoto (o que aproxima  o cinema mais contido de Oshima dos épicos de Akira Kuorsawa) e com uma fotografia assinada por Toichiro Narushima que faz mutações visuais ao longo do tempo narrativo, Furyo, em nome da honra vai semeando uma reflexão sobre a natureza das guerras e pode pôr-se ao lado dos grandes filmes bélicos, como Glória feita de sangue (1958), de Stanley Kubrick, e A cruz de ferro (1977), de Sam Peckhinpah. Na sequência final, passados alguns anos das coisas narradas até ali, os japoneses são agora prisioneiros dos ingleses, invertendo-se a situação anterior (os estoicos orientais impõem aos amedrontados ocidentais seus ritos calculados de morte), e o novo encontro entre Lawrence e o sargento Hara (interpretado por um risonho e debochado Takeshi Kitano) faz evocar a situação de outrora, quando Lawrence, com um realismo melancólico, observa, no tempo presente da cena final, a seu amigo japonês Hara, prestes a ser executado, que ele, Hara, é vítima de homens que julgam estar certos, como antes ingleses como Jack/Bowie, enterrado quase até a cabeça no terreno, o era de outros homens (japoneses) que também julgavam estar certos, quando na verdade ninguém está certo.

Na crueza de violência da narrativa de Oshima há alguns planos de suspiro — duas sequências de planos de memória em que Jack evoca as relações com seu irmão mais novo, humilhado por colegas na escola. Hirto e hierático em boa parte de sua encenação, Furyo, em nome da honra talvez tenha a interpretação que mais lhe corresponde nas expressões faciais e corporais de Ruyichi na pele do capitão Yonoi, um hino a crueldade que é tanto formal quanto física. É curioso que Sakamoto, o intérprete, tenha assinado, como se disse lá atrás, a faixa musical do filme: tudo se interliga, esteticamente.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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