Ophüls: Um Homem Fora do Tempo

O alemão Max Ophüls é na verdade um espírito cosmopolita do cinema.

24/09/2014 16:40 Por Eron Duarte Fagundes
Ophüls: Um Homem Fora do Tempo

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O alemão Max Ophüls é na verdade um espírito cosmopolita do cinema. Em Carta de uma desconhecida (Letter from an unknown woman; 1948), uma obra-prima rodada nos Estados Unidos, ele ambienta em sua amada Viena (muitos o têm por austríaco em face disto, embora, como revela François Truffaut, ele tenha morado em Viena só por seis meses em 1926) uma história inicialmente contada pelo ficcionista austríaco Stefan Zweig (o mesmo que se suicidou em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, em 1942; curiosamente a cidade do Rio é citada de passagem num dos diálogos do filme). Segundo o próprio Truffaut no necrológio dedicado a Ophüls: “Para alguns de nós, Max Ophüls foi o melhor cineasta francês, juntamente com Renoir. É imensa a perda de um artista balzaquiano que se fizera advogado de suas heroínas, cúmplice das mulheres, nosso cineasta de cabeceira.” Alemão, austríaco ou francês, a Ophüls caberiam as mesmas palavras que o crítico literário brasileiro Fausto Cunha usou para definir o romancista carioca José Geraldo Vieira: “Lúcida e vertiginosa, com seu metaforismo dinâmico, a linguagem de José Geraldo Vieira é de um homem que respira livremente em todos os meridianos da Terra.” Especialmente nisto: Ophüls, com seu cosmopolitismo de filmar (mesmo que Truffaut atraia para a França o refinamento psicológico de Ophüls), respira bem em todos os meridianos do planeta.

Carta de uma desconhecida é um dos mais aprofundados estudos duma paixão desesperada que o cinema conhece. O desespero cresce porque a paixão é ignorada. No texto de Zweig, publicado em 1925, o homem que recebe a carta da desconhecida é um “conhecido romancista” que voltou para Viena depois de três dias descansando num passeio nas montanhas; Ophüls altera a expressão artística da personagem: no filme é um pianista às voltas com seus concertos. O cineasta italiano Luchino Visconti, ao realizar seu Morte em Veneza (1971), fez o mesmo com a novela do alemão Thomas Mann, de 1922: Gustav Auerbach, que é um escritor (auto-retrato?) no livro de Mann, se converte num compositor musical no filme de Visconti. Demais, se a história de Zweig é toda ela montada pela carta da desconhecida, o filme de Ophüls exibe o esforço estilístico de transformar em preciosas imagens narrativas o texto da carta do livro de Zweig; a carta no filme de Ophüls é o esqueleto que, sob a forma de voz-over, vai ligar os episódios soltos em que se envolvem o indiferente pianista e a incauta apaixonada; a desmemória dele (a cada reencontro com a garota nunca se lembra dela) e o coração agudo da mulher (ela se dói da desmemória dele) produz a profundidade do desespero em cena. Como todo grande cineasta que vai a uma obra literária de prestígio para motivar um filme, Ophüls toma liberdades para com o original, dele mantendo só o que corresponde a seu espírito: o resultado é uma obra pessoal e única.

Além da maravilhosa câmara e do poder dos cenários em Carta de uma desconhecida, cabe ressaltar a combinação precisa entre a melancolia interpretativa de Joan Fontaine (quem aprecia Meryl Streep, vai ver que Meryl extraiu muito de seu jeito de Joan) e o distanciamento mundano de Louis Jordan. Rodado numa fotografia propositadamente obscura, noturna, onde nem sempre se vê bem o que está em cena, Carta de uma desconhecida é um monumento de sutileza cinematográfica.

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

 

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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