A Maneira de Fazer um Filme: Era Uma Vez Ozu
Há várias maneiras de se fazer cinema. E todas podem estar certas. Desde que deem certo. Saiba o que isto significa.
Há várias maneiras de se fazer cinema. E todas podem estar certas. Desde que deem certo. É a presunção que tenho ao abeirar-me dos sessenta anos de idade. Era uma vez em Tóquio, também conhecido por Viagem a Tóquio (Tokyo Monogatari; 1953), utiliza uma destras maneiras. Descoberto no Ocidente somente após sua morte, a partir de sua ascendência a partir da década de 70 sobre o cineasta americano Paul Schrader e o realizador alemão Wim Wenders, o japonês Yasujiro Ozu se vale dos gestos e das palavras comuns das pessoas para edificar um cinema aparentemente banal mas profundamente pensado e planificado (planificar como montagem interna do plano e o modo com que este plano vai operar na montagem do filme). Como escreveu Schrader em seu fundamental O estilo transcendental em filme: Ozu, Bresson, Dreyer (1972), “em Ozu, a estilização é próxima do absoluto”. E que mais vemos? Anota Schrader: “Cada composição estática, cada conversação monótona, cada expressão branda, cada corte preciso”. Em Era uma vez em Tóquio as características do cinema de Ozu atingem seu estado de graça e provavelmente o estado de graça de todo o cinema japonês; Akira Kurosawa é mais palatável para o espectador ocidental, e mesmo os dramas encenados por Kenji Mizoguchi são mais assimiláveis por nossa cultura, mas, conquanto grandes e descobertos antes por aqui, não igualam a Ozu no rigor e na paixão com que um filme é feito, graças à visão Zen (muito oriental) do autor da obra-prima Bom dia (1959).
O natural encenado por Ozu difere daquele jeito francês malicioso de alguns filmes de Jean Renoir, Toni (1934) entre eles. Não se pode dizer, todavia, que Ozu seja sisudo: como cineasta do espírito, falta-lhe a aspereza do francês Robert Bresson e do sueco Ingmar Bergman. Há um humor imaturo, muito sinuosamente nipônico nos conflitos humanos (às vezes, como no final, profundamente amargos) entre as personagens. O observador sorri ao de leve. Sem peso. Ou brandamente.
Se o alemão Max Ophüls foi celebrizado pelo delírio do movimento de câmara, Ozu é bastante apreciado pela rigorosa arquitetura de seus planos fixos. Em Era uma vez em Tóquio há somente dois planos em que o movimento de câmara se dá. São movimentos discretos, por pouco imperceptíveis pelo analista. Num destes movimentos a câmara, no constante plano-tatami (ao rés do chão), se desloca rente com o muro para no final do movimento captar em plano fixo o casal de velhinhos sentado. O outro movimento vem na sequência seguinte, após uns dois ou três planos fixos; logo depois que o casal se levanta, e começam a caminhar, a câmara por breves instantes acompanha o caminhar deles. Há ainda um outro uso de câmara móvel, mas é um artifício em que relativamente a câmara está sem mexer-se: num passeio turístico por Tóquio, a câmara se posiciona dentro dum ônibus em movimento em que estão os velhinhos. O mais são planos soberbamente estáticos.
Há certos signos visuais do “cotidiano de Ozu” cuja constância é magistral. As chaminés de Tóquio e o trem que cruza o plano já estão nos planos iniciais, mas se reiteram ao longo do filme. As roupas no varal, outra obsessão do cineasta, se repartem pela narrativa de Era uma vez em Tóquio como interstícios poéticos, refrões visuais; geralmente os varais surgem em primeiros planos, mas aqui e ali assomam no fundo do plano ou num plano médio.
A história contada em Era uma vez em Tóquio é singela e desprovida de excessos dramáticos, vai contra qualquer gordura narrativa, o que pode gerar incompreensões numa arte com tendências gordurosas como o cinema. A inocente viagem a Tóquio do casal de velhos para ver os filhos se revela uma inoportuna confrontação de descaso familiar para com a velhice; o conflito se exacerba quando a mãe, tornando de Tóquio, adoece e morre, o filho médico, a filha casada, a filha solteira, a viúva de um filho já falecido, a empregada, cada um a seu modo vivencia uma experiência emocional para com os idosos, como preparação para a agudeza da cena final em que a solidão do viúvo é exposta crua e despojadamente diante duma câmara mais uma vez imóvel.
Vale a pena a pensar no cinema de Ozu, e especialmente nesta sua obra máxima que é Era uma vez em Tóquio, a partir do que foi a vida do indivíduo Ozu. Solteirão, ele viveu com sua mãe até a morte dela. Esta imaturidade emocional (não logrou desfazer o cordão umbilical) estabelece um tipo de universo cinematográfico dotado de uma ingenuidade própria e que muitas vezes é de problemática aceitação por parte do espectador; mas esta imaturidade quase infantil dos sentimentos das personagens de Ozu, presentes em Era uma vez em Tóquio e oriundos da própria natureza de seu criador, é resolvida com uma originalidade e uma criatividade que, ainda que poucos saibam ver, é cinematograficamente intensa.
Há várias maneiras de se fazer cinema. Todas podem dar certo desde que deem certo. Eu elegeria esta maneira utilizada em Era uma vez em Tóquio como uma das minhas favoritas. Será que foi somente porque deu certo?
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro Uma vida nos cinemas, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br