Escrevendo Como Quem Lê
Mirabilia (2014), um livro cuja inteireza de ser apaixona
Alessandra Rech, jornalista e escritora caxiense, professora universitária, escreve como quem lê, quer dizer, como alguém que está valorizando a essência da literatura, que é a palavra e seus muitos modos de existir. Tenho predileção por escritores assim, que não temem expor-se em literatura, isto é, em exigir da palavra muito do que ela pode dar. Alessandra reuniu crônicas publicadas no jornal Pioneiro, de Caxias do Sul, entre 2007 e 2013; o resultado é Mirabilia (2014), um livro cuja inteireza de ser apaixona.
Na crônica Último dia uma equipe de televisão a aborda diante dum caixa eletrônico de banco para lhe perguntar que faria se tivesse somente mais um dia de vida. Do brasileiríssimo e direto “Nooossa!” esta escritora que é também uma pensadora notável acaba dando aos repórteres a resposta inevitável: escolheria o melhor dos livros já lidos para reler nesse derradeiro dia. Nada mais acertado aplicado a quem, como Alessandra, cunhou seu criativo estilo de escrever no melhor da história literária em língua portuguesa. E, depois de navegar por Simões Lopes Neto e Machado de Assis, Rech vai explodir em chamas de palavras. “Assim, leitores, possuída por palavras, insana, transfigurada, me despediria da vida.” Os demais leitores, não sei, mas nesta imagem eu parecia ver Alessandra num fogo de textos variados neste momento final. E eu estaria lá, talvez um pouco à distância para não manchar o espetáculo, como reverência deste outro caxiense que sou à artista da palavra que é Alessandra Rech.
Mas, por favor, não julguem, se mal-entendidos lhes joguei, que Rech seja uma escritora difícil ou pedante. Suas frases escorrem com naturalidade, e a gravidade de alguns pensares topa numas saídas de sinuoso humor a comunicação com o público habitual do jornal em que escreve, o Pioneiro da serra gaúcha. “Minhas ideias são serpentes: frias, sinuosas, enrodilhando-se como um bote.” Alessandra escreve em Caxias do Sul, talvez seu público majoritário seja caxiense, por trás do refinado universal de seu verbo o leitor que conheça a região vai descobrir os tons daquele meio formado basicamente por italianos. “Tenho no fundo do lote (expressão pitoresca de minha infância que trago de volta porque amplia um terreno urbano para o tamanho duma floresta particular)”.
Os cenários traçados por Alessandra em Mirabilia tanto estão nas ruas de Caxias do Sul quanto em ambientes distantes como Barcelona, Jaguarão, Buenos Aires ou Uruguaiana. “Só Buenos Aires poderia gerar Borges”, anota a caxiense. Só Caxias do Sul poderia permitir um texto com as evoluções mentais e linguísticas de Alessandra Rech (embora, em sua superfície, ela pareça menos colonização italiana que um José Clemente Pozenato, por exemplo —mas é onde ela adapta estas origens à sua interioridade que está sua superioridade em relação a Pozenato, que é todavia um bom escritor).
A editora de Rech é a caxiense Belas-Letras. Antes, pela mesma casa, ela publicou um livro de contos, Aguadeiro (2007). Depois um significativo ensaio sobre Guimarães Rosa, Na entrada-das-águas: amor e liberdade em Guimarães Rosa (2010). E compôs um fascinante arabesco infantil, O sumiço do canário: quando os finais precisam ser inventados (2012). As ilustrações de Mirabilia são do cachoeirense Celso Bordignon. Fixada em seu rincão, Alessandra é uma escritora que na verdade tem os ares do mundo. Num e noutro caso, o rincão e o mundo lhe oferecem o melhor e o mais adequado para a confecção duma escrita constantemente em ebulição.
(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)
Sobre o Colunista:
Eron Duarte Fagundes
Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro ?Uma vida nos cinemas?, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br