O Mundo Louco de Noé

Enter the Void (2010), filme rodado franco-argentino Gaspar Noé, é uma obra esteticamente apocalíptica

14/09/2015 10:12 Por Eron Duarte Fagundes
O Mundo Louco de Noé

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Enter the void (2010), filme rodado no Japão pelo franco-argentino Gaspar Noé, é uma obra esteticamente apocalíptica, daquelas que, como A árvore da vida (2011), do americano Terrence Malick, e Melancolia (2011), do dinamarquês Lars Von Trier, busca enraizar-se formalmente nas origens cósmicas da vida, fazendo uma espécie de cinema visualmente totalizante, que pode levar ao delírio alguns espectadores e cansar a maioria da platéia dos cinemas comuns; sem a estruturação filosófica de Malick e os aspectos nórdicos de Von Trier, Noé embarca em suas próprias loucuras com formas constantemente rebuscadas de chamar a atenção do olho do observador.

Antes de mais nada, a fotografia do filme trabalha o obscuro: muita coisa do que se encena se vê pouco ou parcialmente. Os enforcados e insistentes movimentos de câmara completam o serviço de tornar difícil a visão do observador, criando a abstração cinematográfica, uma experimentação estilística que é um pouco como se o russo Sergei Paradjanov filmasse de maneira quase inconsciente uma ficção científica do americano Stanley Kubrick. Lembremos que muito da parafernália de formas de Enter the void foi buscada em 2001, uma odisseia no espaço (1968), de Kubrick; mas onde o americano pôs seu cérebro, Noé despejou o estômago, as tripas; o que lhe confere originalidade e diferença. Num Noé mais antigo, Sozinho contra todos (1998), o exercício do pessimismo do diretor parecia não ter gás ou transparência; em Enter the void ele recupera sua energia de filmar, que foi a base de seu mais reverenciado filme-escândalo, Irreversível (2002); mas decididamente não é um filme para todos, e, como não tem a peça de choque mais visível de Irreversível (a italiana Monica Belluchi estuprada no interior dum túnel parisiense), Enter the void teve até agora barrados seus caminhos nos cinemas comerciais brasileiros, e neste limbo deverá permanecer, a não ser que alguma onda ou prêmio importante o empurre para o grande público.

Como Elisa, vida minha (1977), do espanhol Carlos Saura, e O anjo exterminador (1962), do também espanhol Luis Buñuel, dois filmes mais serenos e clássicos, Enter the void reutiliza imagens encenadas ao longe de sua narrativa, reincidindo assim no tempo. A imagem do casal de irmãos que vê Tóquio da varanda dum apartamento, com ele dizendo algo como “é bom ver Tóquio do alto”, vai e vem ao longo da projeção. Também outra cena que reaparece é a de uma personagem caída no cenário dum sanitário. E assim também aquelas ofuscadas tensões de luzes que duram longamente na tela e que parecem extraídas dos corredores cósmicos de 2001, uma odisseia no espaço.

A longuíssima e irregular (como todo o filme) mas belíssima (como todo o filme) sequência final em que o ato sexual é filmado do ponto de vista da mulher (seus gemidos, suas expressões entrevistas) se põe como uma das mais belas orgias/elegias orgiásticas/orgásmicas da história do cinema, equivalendo-se às travessuras corporais de Marlon Brando e Maria Schneider no chão dum apartamento parisiense em O último tango em Paris (1972), do italiano Bernardo Betolucci, e à condução interpretativa da americana Jane Fonda compondo um orgasmo de sua personagem ao ajeitar-se com um paralítico em Amargo regresso (1978), do americano Hal Ashby. Enfim, um dilúvio cinematográfico. Como caberia a um Noé.

P.S.: Assim como Fata Morgana (1971), o ponto máximo do cinema do alemão Werner Herzog, expôs-se à luz do texto do Livro dos Mortos dos incas, Enter the void extrai muito de si do Livro dos Mortos Tibetano. Alguma ligação entre estes dois arrojos cinematográficos?

 

(Eron Duarte Fagundes – eron@dvdmagazine.com.br)

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Sobre o Colunista:

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes

Eron Duarte Fagundes é natural de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1955; mora em Porto Alegre; curte muito cinema e literatura, entre outras artes; escreveu o livro “Uma vida nos cinemas”, publicado pela editora Movimento em 1999, e desde a década de 80 tem seus textos publicados em diversos jornais e outras publicações de cinema em Porto Alegre. E-mail: eron@dvdmagazine.com.br

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